quarta-feira, 27 de abril de 2011

MOVIMENTOS SOCIO-RELIGIOSOS NORDESTINOS: UM BREVE RESGATE DE SUAS HISTÓRIAS

IV Colóquio Internacional Educação e Contemporaneidade ISSN 1982-3657
MOVIMENTOS SOCIO-RELIGIOSOS NORDESTINOS:
UM BREVE RESGATE DE SUAS HISTÓRIAS
Célia Camelo de Sousa-UECE1
celiacamelods@yahoo.com.br
Lêda Vasconcelos Carvalho-UECE2
ledafor@click21.com

RESUMO
Este trabalho resulta de estudos sobre os movimentos socioreligiosos que eclodiram no Nordeste do Brasil entre os séculos XIX e XX, destacando os movimentos: Canudos-Ba (1893), Caldeirão - CE (1926), Pau de Colher - BA (1934) e Borboletas Azuis - PB (1977). Buscamos resgatar a dinâmica desses movimentos que emergem no campo nordestino em tempos diversos. A metodologia valorizou fontes bibliográficas, documentos escritas e narrativas de homens e mulheres que buscam a preservação da História do sertão nordestino. Da análise destacamos que os movimentos religiosos que eclodiram no sertão do nordeste é a gênese das lutas campesinas no Brasil, de resistência a situação de opressão e de miséria que, com suas especificidades, assumiam como fundamento a chegada do “messias” para por fim a opressão e a injustiça social.
Palavras-chave: História, Nordeste, Movimentos Socioreligiosos.

SOCIO-RELIGIOUS MOVIMENTS IN NORTHEAST BRAZIZ:
ONE BRIEF RESCUE HISTORICAL
This work results from studies on the movement socioreligiosos thar erupted in northeastern of Brazil between the nineteenth and twentieth centuries, highlighting the movements: Canudos - Ba (1893), Caldeirão - CE (1926), Pau de Colher - BA (1934) e Borboletas Azuis - PB (1977). We seek to recover the dynamics of these movements that emerge in the northeast field at different times. The methodology appreciated bibliographical sources, documents and narratives of men and women seeking to preserve the history of northeastern Brazil. From the analysis we emphasize that the religious movements that erupted in the hinterland of the northeast is the genesis of peasant struggles in Brazil, the resistance situation of oppression and misery, with their specificities, assumed as a basis the arrival of the "messiah" to end the oppression and social injustice Keys-Words : History, Northeastern, movements socioreliogiosos.
Keys-Words: History, Northeastern, movement’s socioreliogiosos
1 Pedagoga e habilitanda em Gestão Escolar pelo Curso de Pedagogia do CED/UECE.
2 Mestre em Educação e Professora do Curso de Pedagogia do CED/UECE.


Introdução
Este trabalho resulta de estudos sobre os movimentos socioreligiosos que eclodiram no Nordeste do Ceará entre os séculos 19 e 20. Para efeito deste artigo ocupamo-nos em realizar um breve resgate histórico desses movimentos na dinâmica socio-histórica objetiva que provocou a sua eclosão em espaços e tempos diferentes, tendo, contudo, como particularidade a opressão das oligarquias locais, a seca e, como efeito, a miséria e a fome que marca a História do Nordeste Brasileiro, especificamente a História do sertão nordestino.
O estudo da História ocupa-se com o tempo. Apropriando-nos das palavras de Cardoso preocupa-se “... com a duração, com a mudança e com as resistências à mudança, com as transformações e as permanências ou sobrevivências” (1982, p. 107). A historiografia oficial, contudo, ao tentar paralisar a história humana nos forneceu uma leitura do tempo destituído de historicidade. A História torna-se a História de fragmentos do passado, contado sob a perspectiva do dominador, do vencedor, perdendo de vista a história construída nos diversos tempos e espaços e/ou no mesmo tempo e espaço por grupos e classes sociais com concepções de mundo e interesses distintos. Assim entrou a historiografia do nordeste do Brasil. O povo nordestino como uma sub-raça, passivo e aprisionado nos mundos místicos e, por isso mesmo, inapto ao progresso demandado pelas sociedades modernas. Como agravante, diz a leitura dominante, conta ainda com condições naturais e climáticas adversas ao progresso individual e coletivo.
A prática social de homens e de mulheres, de grupos e classes sociais do Nordeste revela, contudo, outras histórias. Entre os séculos XVI e XVII os povos indígenas que habitavam as terras nordestinas foram ativos combatentes nas Guerras dos Aimorés (Bahia), dos Potiguaras (Paraíba-RGN), dos Tupinambás (Bahia e Espírito Santo-Sudeste), da Confederação dos Cariris (PB e CE -1686-1692), todos contra a opressão luso-brasileira. No Ceará, nos mesmos séculos, colonizadores foram diversas vezes forçados a fugir pela força da resistência indígena. Somam-se a essas lutas a Insurreição Pernambucana que culminou com a expulsão dos neerlandeses do Nordeste do Brasil; o Motim do Nosso Pai (PE, 1666); a Revolução de Beckman (MA, 1684-1685); a Guerra dos Mascates (PE, 1710-1711); O Motim do Maneta - sublevações contra o monopólio do sal e aumento de impostos (Ba, 1711); a Revolução dos Alfaiates (Ba. ), a Confederação do Equador (revolta separatista, Nordeste - 1823-1824); a Cabanada (insurreição popular, Pe. e Al.- 1832-1835); a Sabinada (insurreição popular, Ba 1837-1838); a Balaiada (insurreição popular, Ma -1838-1841); Insurreição Praieira (revolta socialista, Pe. -1848-1850), dentre outros. Em síntese, da resistência inicial indígena e quilombola os nordestinos introjetaram a persistência e a esperança por um futuro sem opressão e de liberdade.
São movimentos que por motivações diversas desmistificam o imaginário historicamente construído sobre a formação político-cultural do povo do nordeste. As histórias dos homens e das mulheres reais desvelam a outra história que a História oficial mascarou. De um povo preso às tradições revela-se um povo com potencial transgressor, mesmo que em determinadas circunstâncias essa transgressão insurja com facetas míticas, religiosas, como, por exemplo, os movimentos messiânicos. É nessa perspectiva que se insere o nosso estudo
Nosso objetivo como este artigo é resgatar as lutas de resistência dos movimentos messiânicos que, com suas especificidades, insurgiram no Nordeste do Brasil, dentre os quais Canudos-Ba (1893-1897), Caldeirão-CE (1926-1936), Pau de Colher – BA (1934) e Borboletas Azuis - PB (1977). O tratamento metodológico valorizou fontes bibliográficas e documentos escritos e narrativas e mulheres que, apesar do tempo, não deixam a memória de sua história apagar-se. Para a sua exposição o artigo será divido em dois momentos: no primeiro momento abordaremos o conceito e os contextos sociohistóricos dos movimentos sociais de características messiânico-religiosas que em tempos e lugares diversos refletiram tipos de resistência contra a opressão e a miséria e pela justiça social; no segundo momento destacaremos os movimentos sociais de características messiânicas que eclodiram no Nordeste brasileiro e sua relação com a realidade sociohistorica objetiva que marcava a região.

1 Movimentos populares sócio-religiosos: do que se tratam?
Quando se fala em movimentos sócio-religiosos ou de características messiânicas imediatamente identificamos um conjunto de estudos que os abordam sob perspectivas diversas. Há quem os identifiquem como movimentos sociais de conteúdo revolucionário, outros que os apreendem como movimentos utópicos ou mesmo frutos da ignorância e do fanatismo. Em alguns casos passa-se a idéia de que um movimento social-popular contestatório deve ser movimento pela consciência sócio-histórica para a qual necessita o abandono da ignorância. Na nossa perspectiva concordamos com Rossi quando diz que o messianismo é uma força histórica, dinâmica e prática e, sob nenhuma hipótese pode ser compreendida como uma força passiva e inerte, de ressignificação e conformismo. Reforça o autor:
Nesse sentido pode-se falar que uma das características fundamentais do messianismo é seu caráter de “salvação coletiva” em detrimento da salvação individual. A dinâmica do movimento envolve o grupo e não o indivíduo. Envolve a história de um grupo a partir de suas relações sociais e não a história de uma personalidade individual. E, por isso mesmo, é um movimento dinâmico; um movimento da força social que busca a transformação da terra não para um só homem, mas para toda a humanidade (2007, p. 10).
Na história da humanidade nem todos os movimentos contestatórios dos setores explorados e oprimidos tinham a consciência do papel histórico que desempenhariam. Essa constatação não reduz a sua dimensão histórica. A dimensão política e de recusa as estruturas de poder dominantes, ou mais precisamente a luta consciente entre os setores explorados e oprimidos contra seus opressores e explorados muitas vezes se desenvolveram de forma fragmentada, centrados em lutas especificas ou simplesmente transmissão de valores contra – hegemônicos que não colocavam como problema a superação da sociabilidade então dominante, nem mesmo a divisão do poder político com os setores dominantes da sociedade. Foi assim, inclusive, às primeiras lutas empreendidas pelos comerciantes e nobres na Idade Média, foi assim nos primeiros séculos do calendário cristão.
No século I, depois de Cristo, o mundo então conhecido foi tomado por movimentos de natureza doutrinária que inquietava e desafiava a tradição dos povos do mediterrâneo, particularmente os valores de sua classe dominante e dirigente. O movimento cristão primitivo inaugura organicamente seus próprios fundamentos e os apresentará como alternativa a cultura hebraica e ao helenismo.
Apropriando-nos das palavras de Cambi,
Com o Apocalipso de São João, os temas do “fim dos tempos de tensão escatológica na história e da regeneração final do homem (com a resurrectio carnis e o juízo de Deus) são os que iluminam um caminho educativo próprio das comunidades cristãs, caminho que deve nutrir-se de uma tensão para a “realização dos tempos”, assim como da “redenção da realidade”, solicitando expectativas e empenho escatológico, tensões proféticas, um olhar para além da história a fim de preparar sua superação (1999, p. 124-125).
A exaltação do Cristo como homem espiritual, sofredor, em luta pela justiça social e pela redenção dos homens, e que por esses ideais teria morrido, serviu de alimento para a emergência de movimentos messiânicos que passaram a ser difundidos em diversos continentes, dentre os quais no norte da África, na Oceania, no Sudoeste da Ásia e nas pradarias da América.
Esses movimentos de características religiosas passaram para a historiografia com a denominação de Movimentos Messiânicos. Ressaltamos, porém, que o caráter mítico, religioso desse fenômeno social manifesto em regiões tão distintas do globo não nega a dimensão histórico-social que provocam a sua emergência. Concordando com Arruda, os movimentos messiânicos, mesmo considerando suas especificidades, trazem consigo a negação da opressão, sendo “uma das formas de resistência dos povos oprimidos em seu confronto com as estruturas de dominação (ARRUDA, 2006, p. 26). Lembramos que os primeiros movimentos messiânicos registrados pela historiografia emergiram com a consolidação da revolução industrial e a expansão territorial dos impérios coloniais para espaços já conhecidos, visando sobre tudo mercado consumidor para seus produtos e matérias primas e, como parte importante desse processo a imposição de hábitos de consumo e valores culturais que deveriam ser absorvidos pelas regiões e povos conquistados. O chamado neocolonialismo foi, portanto, um processo de dominação política, econômica e cultural das potências capitalistas que culminou com a partilha da África e da Ásia e, como efeito, a pilhagem de regiões inteiras e a ampliação da miséria dos povos dos lugares dominados. Nesse movimento merece destaque a exploração econômica das terras para exploração dos grandes consórcios capitalistas. O resultado desse movimento histórico foi a emergência de vários tipos de lutas coloniais, envolvendo particularmente as comunidades que viviam da agricultura. Nesse sentido concordamos com Arruda quando ressalta os movimentos messiânicos/religiosos como a gênese das lutas sociais campesinas. Com suas palavras:
È necessário salientar que a reação messiânica só começou a eclodir após o surgimento dos primeiros conflitos pela posse da terra usurpada pelos colonizadores europeus. Enquanto as relações entre ambos eram pautadas por cordialidades recíprocas, a história não registrou nenhum surto desses movimentos. Porém, à medida que a postura colonialista começava a se delinear e a mostrar sua real face, e as terras indígenas passavam a ser alvo de invasões e seu povo subjugado, as reações eram imediatas, sendo o messianismo uma das principais formas de resistências anticolonialistas (ARRUDA, 2006, p. 35).
De fato como camponeses livres ou trabalhadores escravizados, os trabalhadores rurais se revoltaram contra sua exploração em inúmeras ocasiões desde o século XVI (PALÁCIOS, 2004). No Brasil, desde a conquista portuguesa no século XVI o modelo econômico dominante foi marcadamente o de concentração da terra em benefício de uma minoria e, como efeito, de exclusão da maioria do direito ao acesso a terra. O latifúndio garante sob diversas formas a sua expansão, contando com a proteção dos governantes locais. Essa realidade impulsiona resistências dos excluídos sociais e econômicos. Entre os séculos XIX e XX eclodem o cangaço e os movimentos sociais messiânicos. Ambos vinculados as questões sociais e fundiárias no Nordeste brasileiro, mesmo que partam de referências diferenciadas de luta contra a exclusão e a opressão. Para efeito deste artigo nos interessa os movimentos messiânicos que propiciaram aos deserdados da terra inscrever-se na história dos movimentos sociais do campo brasileiro e nordestino.

2 Canudos, Caldeirão, Pau de Colher e Borboletas Azuis: a resistência dos sertões nordestinos pelos movimentos socioreligiosos 
O sertão do Nordeste do Brasil serviu de inspiração para a construção de importantes obras literárias que, sob a perspectiva do seu escritor narrava a paisagem natural e social dos sertões. Domingos Olympio, no romance Luzia Homem, publicado pela primeira vez em 1903, em uma das passagens do livro assim se reportava a seca e a população sertaneja do Ceará no ano de 18773:
Era o mesmo vaivém ininterrupto de homens, mulheres e crianças envoltos em rolos de pó sutil, magros e andrajosos, insensíveis á fadiga, ao calor de fulminar passarinhos, taciturnos uns, os semblantes deformados por traços denunciadores de íntima revolta impotente; outros resignados, como heróis, vencidos pela fatalidade; muitos alegres e sorridentes cantavam e brincavam, como criaturas felizes de encontrarem refúgio do assédio angustioso da fome, da miséria, da morte (1999, p. 95).
Á historiografia crítica do Nordeste reforça a percepção do escritor sobre a paisagem dos sertões nordestinos naquele contexto, acrescentando as contradições sociais e econômicas da região que potencializaram os conflitos sociais, como, por exemplo, a concentração de terras nas mãos das oligarquias locais que se aproveitavam inclusive da seca e da miséria para oprimir e explorar. Na formulação de Furtado:
...a sociedade formou-se no âmbito das fazendas, onde poder econômico e poder político eram duas faces da mesma moeda e onde os aglomerados urbanos nada mais eram que prolongamentos das fazendas. Esse quadro de isolamento reforçava a situação de dependência do trabalhador rural em face do senhor de terra. (FURTADO, 1989, p. 22).
A concentração de terras e o fenômeno das secas reforçam a descrença dos “deserdados” da terra de qualquer saída que não fosse de natureza mítico-religiosa. A fé torna-se a força que mantinha em “pé” os caboclos sertanejos e o elemento que propiciou o seu agrupamento em torno de promessas propagadas por homens como Antônio Conselheiro (Canudos), José Lourenço (Caldeirão), Senhorinho (Pau de Colher) e Roldão (Borboletas
3 Luzia Homem é uma obra literária produzida pela Escola Naturalista, porém não é difícil encontrar no decorrer de suas páginas a paisagem social e econômica dos sertões do Ceará, o ambiente de catástrofe natural causando graves prejuízos a vida econômica, social e moral das populações pobres rurais.

Azuis), líderes carismáticos que reanimavam a religiosidade de um povo esquecido pela realidade mundana. Nessa perspectiva reforma Arruda, reportando-se particularmente ao movimento messiânico Canudos:
Canudos não terá sido apenas um dos movimentos sociais mais importantes da história do Brasil. Ele guarda, até hoje, um caráter de exemplaridade da estrutura social e da forma de convivência das classes e dos grupos sociais do país; uma estrutura fundada na extrema concentração da riqueza, da renda e da terra, com uma classe dominante reduzida e poderosa e uma massa numerosa de carentes; uma convivência impiedosa e violenta (2006, p. 5).
As motivações que permitiram, em lugares espacialmente ditintos, o agrupamento de milhares de camponeses, índios e escravos recém-libertos em torno da crença na vida de um “messias” que trará aos homens um mundo de virtudes e justiça não significa dizer que se expressaram de forma similar. Os movimentos messiânicos Canudos e Caldeirão, por exemplo, se separam em um pouco mais de quatro décadas (1874 – 1920), porém ambos construíram uma extraordinária experiência de vida comunitária que rompia com a lógica social do sertão nordestino. Seus líderes, Antônio Conselheiro e o beato José Lourenço encarnavam as esperanças daquele povo e, com o trabalho coletivo construíram um “oásis” em terras castigadas pela seca, pela forme e miséria e, por isso mesmo foram violentamente esmagados. As justificativas, contudo, registradas nos documentos oficiais das épocas, inclusive, os jornais impressos propagavam motivações diferentes para a impiedosa chacina contra suas comunidades.
Conselheiro, líder de Canudos era acusado pelas forças republicanas como sendo um contra-revolucionário monarquista, divulgando, inclusive que o beato estaria armando a comunidade para derrubar a república recém instalada. O movimento republicano que destituiu a monarquia no país estava apoiado na elite agrária e, evidentemente, defendia os interesses das elites regionais. A comunidade de Canudos caminhava na contramão desses interesses e dos compromissos assumidos pelos republicanos. A natureza popular do Arraial de Canudos também se opunha as características das novas estruturas de poder nacional que recusavam qualquer participação popular e sua interferência na nova ordem. Começaria quatro expedições militares para exterminá-la. Em cada uma delas o exército republicano contou com a resistência da comunidade de Canudos, que ao final não resistiu, contabilizando 20 mil sertanejos mortos, entre homens, mulheres e crianças.
Já o Beato José Lourenço, líder da Comunidade do Caldeirão passou a ser associado, pela oligarquias e pelo poder local ao movimento comunista. No ano de 1924, ganha força o movimento tenentista, realizando levantes organizados contra as oligarquias e tendo como principal líder Luis Carlos Prestes. No final de 1925, a Coluna Prestes estava formada e partia para a região nordeste (Maranhão, Piauí e Ceará). Nesse percurso o movimento, liderado por Prestes buscava mobilizar os setores sociais locais marginalizados contra a hegemonia das oligarquias. Era o pretexto que precisava o poder local, a oligarquia local e o poder eclesiástico para fortalecer o apoio da sociedade contra a Comunidade do Caldeirão que, nesse contexto, não dispunha mais das mediações do Padre Cícero. A organização comunitária do Caldeirão era associada à versão comunista de vida societal propagada no mundo com a revolução russa de 1917.
Como nos lembra Figueiredo:
Outra acusação que lhe têm feito freqüentes vezes é a de adulterar o culto, ministrando-o com práticas fetichistas. È outro aleive que, em bem da verdade, precisa ser destruído. Tendo em uma de suas salas, que traz sempre fechada a chave, enorme quantidade de quadros de santos, entre os quais se notam diversas fotografias do padre – Cícero, - as parêdes quase completamente forradas por essa estranha tapeçaria, o beato cada vez que penetra nêsse compartimento, para ele sagrado, curva-se com a maior veneração (Itaytera, 1961, p. 117).
A propaganda ideológica e falsificadora da vida no Caldeirão abriu o caminho para as investidas do Exército contra a comunidade, culminando com a sua destruição e a morte de um número entre 300 e mil sertanejos que viviam no Caldeirão. Com as palavras de Cordeiro Neto (capitão), em entrevista no documentário menciona:
Severino Tavares era um penitente exagerado. Ele estava pregando a rebeldia. A primeira providencia foi mandar a ida de um agente aquele local, examinar e dá informações. Na viagem de retorno José Bezerra disse o seguinte: o governo vai tomar providencia imediatamente ou se não tornara um novo Canudos. [...] Todos decidiram ficar [...]. As coisas, realmente mandamos incendiar. Diante disso, não tinha nada a fazer, a não ser os últimos acontecimentos posteriores. Por outro lado, eu devo dizer que a memória estar viva. O que fez não tenho que me penitenciar. Achei que cumpri com meu dever e com a segurança pública. (Documentário de Rosemberg Cariri, 1986).
As semelhanças entre Canudos e Caldeirão guardam, no entanto, algumas características particulares. Canudos se diferencia dos demais movimentos nordestinos, pela quantidade de “sertanejos que mobilizaram, à extensão dos territórios que controlaram e, sobretudo, aos prolongados e sangrentos combates travados com as forças militares enviadas para exterminá-los” (QUEIROZ, 2005, p.140).
Caldeirão, Pau-de-Colher e Borboletas Azuis, foram movimentos populares nordestinos que não alcançaram a mesma dimensão político e territorial de Canudos, mesmo considerando o longo processo de construção e consolidação da Comunidade do Caldeirão (1926-1936). A experiência traumática de Canudos, inclusive para as forças governistas, não permitiram esses movimentos populares alcançar tamanha dimensão. Não foi a toa à entrada no cenário de tensões sociais da figura do Padre Cícero, personagem religioso do sertão nordestino que transitava entre o poder oligárquico e os miseráveis do sertão cearense, gozando de grande influência como o Beato José Lourenço. Nesse sentido “para os camponeses nordestinos, o Beato era um líder carismático, um conselheiro, um homem dedicado ao trabalho e cheio de amor ao próximo” (RAMOS, 1991, p. 98).
Pau de Colher (1937-1938) e Borboletas Azuis (1977), pela extensão temporal e pelo contexto social e econômico insurgem muito mais como surtos messiânicos sem com isso reduzir sua importância histórica. Ao contrário, suas manifestações permitem-nos a identificação da repercussão da truculência do mercado mundial naquela década no Brasil e seus efeitos ao longo da década de 30, sobretudo nas áreas rurais.
Entre os anos de 1930 a 1940, período que eclode o movimento popular de características sócio-religioso Pau de Colher, a economia brasileira sofre os efeitos da crise econômica mundial que abalou o capitalismo, em especial os Estados Unidos da América, que cortou a compra de artigos de importação, dentre os quais o café do Brasil. Não podemos esquecer que, sendo a economia brasileira fundamentalmente agrário-exportadora, a retração do mercado mundial trouxe repercussões importantes, dentre as quais a queda nas exportações, afetando a cidade e o campo, as áreas rurais e urbanas. No campo da política o resultado foi o aumento dos conflitos sociais internos, no interior dos quais se insere a Revolução de 30 e seus desdobramentos como o Estado Novo e os movimentos populares de trabalhadores rurais, dentre os quais os movimentos Caldeirão e Pau de Colher.
O movimento sócio-religioso Pau de Colher ocorreu no município de Casa Nova na Bahia, entre os anos de 1937 e início de 1938, em plena vigência da ditadura Vargas. A justificativa do golpe de Getúlio Vargas é a existência de um plano comunista para a tomada do poder, "apoiado pelos comunistas de Moscou". Para conter o “avanço comunista”, o governo ditatorial lança o Plano Cohen e com ele a divulgação de que o comunismo estaria infiltrando-se no país. Assim como o Caldeirão, o movimento socioreligioso Pau de Colher se insere nessa contextualidade histórica, sendo o desdobramento sobre todos os aspectos da ofensiva política e militar sobre a comunidade do Caldeirão.
Pela historiografia, Pau de Colher costuma aparecer como extensão do movimento messiânico do Caldeirão, liderado pelos Beatos José Lourenço e Severino Tavares. Seu líder, Senhorinho, procurou reproduzir a comunidade do Caldeirão, bem como os ensinamentos do Beato José Lourenço, contando com o Beato Severiano Tavares para a tarefa de reproduzir a experiência da região do Cariri, no Ceará. Três décadas depois surge o movimento Borboletas Azuis, também num contexto ditatorial, agora sob a égide da ditadura militar, talvez, por isso, suas existências tenhas sido efêmeras. Não conseguiram reunir muitos adeptos e logo foram desmobilizados pelas autoridades policiais e eclesiásticas. Não conseguiram formar comunidades coletivas como Canudos e Caldeirão, porém um século que os separam do primeiro movimento popular organizado de características messiânicas do Nordeste brasileiro, Pau-de-Colher e Borboletas Azuis retratam a manutenção de uma realidade excludente dos sertões. No caso específico dos “Borboletas Azuis”, destaca Araújo:
...as profundas mudanças trazidas pelo Concílio Vaticano II (...), os avanços trazidos pela modernidade e pela ciência, além da proximidade do fim do século XX e do II milênio da era cristã podem ter sido fatores que motivaram a esperança dessas pessoas no advento de um novo reino, onde os “puros” viveriam em total igualdade entre si. Reunidos numa espécie de irmandade, determinado dia, afirmam haver recebido a visita de Jesus Cristo e que este lhes dera a seguinte mensagem, “(...) no mês de maio de 1980 haverá um dilúvio como no tempo de Noé (...) (2009, p. 3).
O dilúvio não aconteceu, o movimento “caiu no descrédito, porém a organização sindical dos trabalhadores rurais que se firmam a partir da década de 30 não pode ser pensada sem a continuidade de todos esses movimentos populares. Sua característica de religiosidade continua ser a marca dos povos dos sertões, mas não a idéia da passividade, do conformismo.

Considerações

Dos resultados do estudo aqui esboçado destacamos que os movimentos sócio-religiosos que eclodiram no sertão do nordeste é a gênese das lutas campesinas no Brasil. São lutas populares de resistência a situação de opressão e de miséria que formavam a paisagem do sertão nordestino. As especificidades que marcaram cada movimento sócio-religioso no Nordeste do Brasil, não reduzem a sua natureza transgressora à ordem política, econômica e inclusive religiosa centrada no poder eclesiástico, constituindo-se, por isso mesmo, numa força histórica, dinâmica e prática que a dimensão religiosa e messiânica não apagou. Ao contrário, os movimentos que antecederam Canudos e que proliferaram com a sua destruição no Nordeste e em várias localidades do território nacional desvelam seus vínculos com a realidade social objetiva.

ARAÚJO, Lidiane Cordeiro Rafael de. “Borboletas Azuis”: crenças de um movimento messiânico-milenarista. IV Congresso Internacional de Estudos Comparativos da ABRAEC UEPB, Campina Grande – Brasil. 22 a 24 de setembro de 2009
ARRUDA, João. Messianismo e Conflito Social: Canudos. Fortaleza: editora UFC, 2004.
ARRUDA, João. Antônio Conselheiro e a comunidade de canudos. Rio-São Paulo – Fortaleza: ABC Editora, 2006.
CAMBI, Franco. História da pedagogia. – São Paulo: Fundação Editora da UNESP (FEU), 1999.
CARDOSO, Ciro Flamarion S. Uma introdução à História. – 2ª. ed. – São Paulo: brasiliense, 1982.
FURTADO, Celso. A Fantasia Desfeita. São Paulo: Paz e Terra, 1989.
OLÍMPIO, Domingos. Luzia-Homem. ABC Fortaleza. – 1999.
POMPA, Maria Cristina. Memória do Fim do Mundo: para uma leitura do movimento sócio-religioso Pau de Colher (Dissertação de Mestrado). 1995.
QUEIROZ, Renato da Silva. Mobilizações socioreligiosas no Brasil: os surtos messiânico milenaristas. REVISTA USP, São Paulo, n.67, p. 132-149, setembro/novembro 2005
ROSSI, Luiz Alexandre Solani. O Messianismo e a Construção do Paraíso na História.
Organização: Karina K. Bellotti e Mairon Escorsi Valério. Dossiê Religião N.4 – abril 2007/julho 2007