quinta-feira, 7 de julho de 2011

A educação na Constituição do Estado do Ceará de 1989

      Se a Constituição Federal de 1988 é extensa como nenhuma outra que a antecedeu, a Constituição Estadual de 1989 extrapola quaisquer expectativas. São 44 dispositivos com extraordinário nível de detalhamento: 18 longos artigos no capítulo da educação (CE 1989, Art. 215 a 232) e 26 outros em diferentes partes do texto8.
      Com tal quantidade de artigos, a Constituição Estadual de 1989 acaba por ser pródiga em casuísmos e promessas. Coerente com o momento político do país, reflete em muitas de suas passagens a presença de corporações profissionais, cujo poder organizativo acaba por lograr êxito em fazer valer direitos que não seriam efetivados em momento posterior.
      A presença do espírito da Constituição Federal de 1988 sobre o texto de 1989 é inegável. Nove de seus artigos são incorporados, no todo ou em parte, ao capítulo da educação (CF 1988, Art. 205 a 211, 213 e 214 e CE 1989, Art. 215, 217, 218, 219, 221, 227, 230 e 231). Assim, há um tratamento comum relativo ao direito à educação, a boa parte dos princípios, deveres e orientações gerais sobre o sistema de ensino. Também há uma sintonia no entendimento de temas passíveis de controvérsia, a exemplo do ensino religioso e da abertura à transferência de recursos públicos à iniciativa privada.
      Uma análise mais detida de todas as passagens relativas à educação permite notar que a aproximação entre as duas cartas está presente no capítulo específico da matéria, mas não nos demais trechos da Constituição Estadual, onde a criatividade se revela em plenitude. Vale observar ainda que determinados conteúdos do texto federal muitas vezes estão dispersos entre partes que não necessariamente expressam a mesma organicidade do texto original. Noutras palavras, o texto estadual faz uma colcha de retalhos de idéias que na Carta Magna do país possuem coerência interna e traduzem um processo de discussão que foi sendo depurado ao longo dos debates da Constituinte.
Enquanto no texto federal há um artigo explícito sobre a educação como “direito de todos e dever do Estado” (CF 1988, Art. 205), na carta estadual esta noção está dispersa. O “direito de todos” é mencionado no início da Constituição no título dedicado à participação popular e aparece associado ao “ensino de 1° e 2° graus9” (CE 1989, Art. 10), expressão sequer usada na Constituição de 1988. Não há no texto referência explícita ao dever do Estado, embora exista um dispositivo que traduz uma concepção de educação, assim como inúmeras atribuições delegadas ao Estado neste campo. Diz-se que “A educação, baseada nos princípios democráticos, na liberdade de expressão, na sociedade livre e participativa, no respeito aos direitos humanos, é um dos agentes do desenvolvimento, visando à plena realização da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” (CE 1989, Art. 215).
      Quase todos os princípios da Carta de 1988 aparecem nesse mesmo artigo, sob a forma de “diretrizes básicas” (CF 1988, Art. 206, I, III, IV, V, VI, VII e CE 1989, Art. 215, I a VI), às quais são acrescentadas uma série de outras da lavra dos constituintes estaduais (CE 1989, Art. 215, VII a XII). Aqui, cabe um destaque à proposta de um conjunto de penduricalhos a serem inseridos no currículo – desde ‘noções de diretos humanos, defesa civil, regras de trânsito, sexologia até a inclusão de matérias sobre cooperativismo e associativismo no currículo das escolas de 1° e 2° graus, assim como disciplinas propriamente ditas, como OSPB10, História, Geografia, Educação Artística (CE 1989, Art. 215, § 1° a 3°).
      A Constituição Federal focaliza o dever do Estado em um artigo que contém sete incisos e três parágrafos (CF 1988, Art. 208). Na Constituição Estadual os dispositivos sobre a matéria duplicam. São dezoito incisos e quatro parágrafos (CE 1989, Art. 218). Percebe-se através desse exemplo o quanto a Carta de 1989 é pródiga em comprometer o Poder Público com iniciativas que geram despesas não previstas pelos legisladores.
O financiamento da educação é tratado nos mesmos termos da Constituição Federal, definindo-se a vinculação de recursos “em montante nunca inferior a vinte e cinco por cento da arrecadação” (CF 1988, Art. 212 e CE 1989, Art. 216). Desse total, é prevista destinação específica às universidades, através de aplicação mensal de nunca menos de um quinto do Orçamento da educação “em despesas de capital do ensino superior público do Estado do Ceará’ (CE 1989, Art. 224). A questão dos recursos aparece ainda na determinação de que o Poder Público assegure “ensino público e gratuito a todos, através de programas sociais devidamente orçados, vedado o uso de salário-educação” (CE 1989, Art. 218, XVII). Sobre o assunto cabe ainda lembrar que prevê-se a destinação de recursos públicos ao setor privado nos mesmos termos da Constituição Federal, como é possível verificar no artigo que trata do assunto (CE 1989, Art. 231)
O texto estabelece orientações para o sistema estadual de ensino (CE 1989, Art. 217 e 218), prevendo assistência técnica e financeira do Estado aos municípios (CE 1989, Art. 217 e 227 § 1°). Aos municípios, conforme já determinado na Constituição de 1988, cabe responsabilizar-se “prioritariamente, pelo ensino fundamental, devendo manter e/ou expandir o atendimento às crianças de zero a seis anos” (CE 1989, Art. 227). Ao Poder Público Estadual cabe a responsabilidade “pela manutenção e expansão do ensino médio, público e gratuito” devendo este adotar “providências para sua progressiva universalização” (CE 1989, Art. 228, § 1°).
A Constituição de 1989 antecipa dois importantes temas do debate sobre educação nos anos subseqüentes à sua promulgação – a eleição de diretores e a municipalização do ensino (CE 1989, Art. 220 e 232). Em ambos os casos prevê-se posterior regulamentação através de legislação específica, o que, de fato, ocorre.
Importantes temas do texto de 1989 são ainda: o ensino superior, destacado em 6 artigos (CE 1989, Art. 219, 221 a 225, 231, § 2° e 7°), a educação das pessoas portadoras de deficiências (CE 1989, Art. 229) e o magistério (CE 1989, Art. 154, XV, Art. 226). O texto também chama atenção por outras particularidades. Para citar algumas, vale mencionar os dispositivos sobre: escolas rurais (CE 1989, Art. 231, § 6°), escolas técnicas agrícolas (CE 1989, Art. 231, § 8°), escolas preparatórias profissionalizantes (CE 1989, Art. 218, § 4°), classes de alfabetização (CE 1989, Art. 218, § 2°), sistema de ensino de tempo integral (CE 1989, Art. 227, § 3°), educação não diferenciada para ambos os sexos (CE 1989, Art. 276), implantação do setor Mulher e Educação na estrutura organizacional da SEDUC (CE 1989, Art. 276, § 2°), política educacional, currículos e calendários escolares incluídos na política agrícola do Estado (CE 1989, Art. 317, 3), Escola Técnica Estadual de Itapipoca (CE 1989, ADCT, Art. 33).
      Esses são apenas alguns entre os muitos conteúdos sobre os quais a educação se destaca na Constituição Estadual de 1989. O inventário, com efeito, é amplo. Fica como tema para posterior aprofundamento investigar em que medida tantas promessas vieram, ou não, a ser efetivadas.

9 Embora a Constituição Federal de 1988 já adotasse a nova designação de Ensino Fundamental e Médio, a Carta Estadual conservou a nomenclatura da Constituição de 1967.
10 Organização Social e Política Brasileira.


Documentos de política educacional no Ceará: império e República/Organização: Sofia Lerche Vieira e Isabel Maria Sabino de Farias; colaboração: Delane Lima Nogueira...[et al.]. – Brasília; Instituto nacional de Estudos e pesquisas Educacionais AnísioTeixeira, 2006.

A educação na Constituição do Estado do Ceará de 1967

      A Constituição Estadual de 1967 não acrescenta diferenças substantivas ao texto federal. De uma maneira geral tende a repetir seus artigos com variações ínfimas. Dela são incorporados todos os princípios, assim como dispositivos diversos, alguns dos quais cabe mencionar: a liberdade de ensino, com a abertura à concessão de “amparo técnico e financeiro às instituições educativas, inclusive com a distribuição de bolsas de estudo, na forma da lei” (CF 1967, Art. 176, § 2° e CE 1967, Art. 135, I) . Também merece registro a admissão de acumulação de cargos que inclui várias aberturas a professores (CF 1967, Art. 99 e CE 1967, Art. 91).
      Ressalte-se que quanto à idéia de educação como “direito de todos”, a Constituição Estadual de 1967 está mais próxima do texto de 1946 que da Constituição Federal de 1967 (CF 1946, Art. 166, CF 1967, Art. 176 e CE 1967, Art. 134). Não há aqui referência à educação como um “dever do Estado”, o que não deixa de ser um registro digno de nota, na medida em que justamente nesta matéria o texto estadual parece projetar-se para além da Constituição Federal. Este é o caso do subsídio ao ensino privado, cujo avanço pode ser detectado na explicitação em trecho sobre o assunto: “Os estabelecimentos particulares de ensino que forem subvencionados pelo Estado deverão proporcionar ensino gratuito a estudantes pobres, em número e pela forma determinados em lei” (CE 1967, Art. 140). Ao que parece, esta é a abertura que faltava ao setor privado para avançar ainda mais em matéria controversa como a concessão de bolsas de estudos às escolas particulares. Tal prática representaria importante mecanismo de clientelismo político em que o Estado se omitiria do dever da oferta, delegando ao setor particular uma oferta de má qualidade.
      Adotando os mesmos princípios “estabelecidos no Título IV da Constituição Federal e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional” a Constituição Estadual define outros que lhe são peculiares. O exame dos dispositivos sobre a matéria revela três aspectos inovadores, quais são sejam: a idéia de distribuição dos investimentos em educação “segundo critério geográfico das regiões educacionais, e de acordo com a sua densidade demográfica”; a adoção de “critério de proporcionalidade quanto aos diversos graus de ensino na prioridade seguinte: primário, médio e superior” nas despesas orçamentárias com educação; e, a vinculação das “dotações destinadas a auxiliar entidades educacionais”, reservando-se obrigatoriamente trinta por cento “ao ensino técnico-profissional e vinte por cento ao ensino normal” (CE 1967, Art. 135, II, III e IV, respectivamente).
Algumas outras especificidades da Constituição Estadual de 1967 são: a estabilidade de funcionários concursados após dois anos (CE 1967, Art. 92), assim como a remoção de professores primários, salvo por promoção e “a pedido ou por conveniência do serviço, mediante proposta do Conselho Estadual de Educação” (CE 1967, Art. 139). Para finalizar, cabe mencionar ainda um último detalhe, referente ao papel do Estado na promoção da cultura. A orientação geral é semelhante à da Constituição Federal que, define o “amparo à cultura” como um dever do Estado (CF 1967, Art. 180). Inova, porém, a carta estadual ao definir que o Estado auxiliaria “os cientistas, os inventores, os escritores, os artistas e os pesquisadores na efetivação de empreendimentos de interesse coletivo, e, anualmente, através da Secretaria de Estado competente” concederia “prêmios a trabalhos científicos, literários, artísticos e de pesquisas, classificados em concursos” a serem promovidos “diretamente ou em colaboração com outras entidades” (CE 1967, Art. 137). Se tal dispositivo viesse a ser efetivado, representaria uma verdadeira festa para a intelectualidade. Como de outras vezes, contudo, a vontade do legislador não veio a ser posta em prática.
      A análise da Constituição Estadual de 1967 revela que esta guarda muitas semelhanças com a Constituição Federal do mesmo ano, apresentando poucos elementos originais. Nesse sentido, se não traz avanços significativos, também não se pode afirmar que registre retrocessos, como seria de se esperar de um texto concebido durante a vigência da ditadura.

Documentos de política educacional no Ceará: império e República/Organização: Sofia Lerche Vieira e Isabel Maria Sabino de Farias; colaboração: Delane Lima Nogueira...[et al.]. – Brasília; Instituto nacional de Estudos e pesquisas Educacionais AnísioTeixeira, 2006.

A educação na Constituição do Estado do Ceará de 1947

      A Constituição Estadual de 1947 toma o texto nacional de 1946 como inspiração, dele incorporando muitos artigos. Semelhante tendência pode ser detectada nas constituições estaduais de 1935 e 1945, onde grande parte das orientações é idêntica. Exemplos nesse sentido são os dispositivos sobre direito à educação (CE 1947, Art. 144), atribuições do Estado e dos Municípios, liberdade à iniciativa particular (CE 1947, Art. 167) e ensino religioso (CE 1947, Art. 168, V).
      Existem, contudo, algumas diferenças substantivas entre as duas constituições. A afirmação da gratuidade, princípio importante da Constituição de 1946, não aparece na Constituição Estadual de 1947. O texto estabelece apenas que “o ensino primário é obrigatório” (CE 1947, Art. 149), cabendo ao Estado e aos Municípios “a todos proporcionar os meios de adquirirem gratuitamente instrução primária e profissional (CE 1947, Art. 148). É de se supor que entre esses meios, esteja a oferta de “ensino gratuito a estudantes provadamente pobres em estabelecimentos particulares que forem subvencionados pelo Estado” (CE 1947, Parágrafo Único). Ou seja, em lugar da oferta pública para todos, concede-se aos pobres a possibilidade de um acesso através da iniciativa particular. Assim esclarece o artigo que trata do papel do Estado na oferta de educação:

            “O Estado instituirá pelos órgãos competentes e pelo Conselho Técnico de Educação, o seu sistema   educativo, mantendo estabelecimentos oficiais e subvencionando os particulares de ensino primário, secundário, normal, normal-rural, profissional e superior, dentro das diretrizes gerais do plano de educação nacional” (CE 1947, Art. 147)

      Como se vê, o texto constitucional cearense referenda o subsídio estatal ao setor privado, antecipando de certa forma determinação que vai se configurar com maior clareza apenas no texto da LDB de 1961. Ainda a respeito de subvenções, cabe lembrar a previsão de não cobrança de “taxas e emolumentos aos estudantes provadamente pobres dos cursos normal, secundário e superior dos estabelecimentos de ensino oficiais ou oficializados” (CE 1947, Art. 156). Para os estudantes de maior destaque, são previstos, inclusive prêmios e bolsas de estudos (CE 1947, Art. 156, Parágrafo Único).
      As diferenças entre as duas constituições não se limitam ao tema da subvenção ao ensino privado pelo Estado. Também é oportuno registrar outros aspectos inovadores, a exemplo da idéia de uma escola itinerante para alfabetizar os moradores de sítios e fazendas (CE 1947, Art. 149, § 3º). Merecem registro ainda as considerações acerca de um o ensino profissional “ministrado a menores já alfabetizados, em escolas profissionais rurais (...) localizadas nos principais centros de produção agrícola, e em escolas de artes e ofícios que” seriam “criadas nas cidades de mais de cinco mil habitantes em que houvesse predominância de ocupações artesanais” (CE 1947, Art. 140). Outro aspecto peculiar ao texto cearense diz respeito ao ensino rural, quando estabelece que “as escolas típicas rurais que forem instaladas em prédios construídos mediante auxílio financeiro da União serão preenchidas de preferência, por professoras diplomadas em Escolas Normais Rurais” (CE 1947, Art. 154).
      A Constituição Estadual de 1947 traduz um momento significativo da educação no Ceará. Incorpora elementos do espírito redemocratizador que marca os anos subseqüentes ao Estado Novo, explicitando expectativas acerca do papel do Estado no campo escolar. Como os demais textos constitucionais, representa uma amostra interessante das contradições próprias da educação nacional e local.

Documentos de política educacional no Ceará: império e República/Organização: Sofia Lerche Vieira e Isabel Maria Sabino de Farias; colaboração: Delane Lima Nogueira...[et al.]. – Brasília; Instituto nacional de Estudos e pesquisas Educacionais AnísioTeixeira, 2006.

A educação na Constituição do Estado do Ceará de 1945

      A Constituição Estadual de 1945 guarda estreita sintonia com o texto federal de 1937, tendência que já se expressara em relação às cartas que lhe antecederam em âmbito nacional (1934) e local (1935). O espírito desta carta, com efeito, é tributário da Constituição do Estado Novo, onde prevalece a orientação de um Estado compensatório, voltado para o atendimento aos “mais necessitados”, como já se viu em passagem anterior deste ensaio. Tal tendência pode ser percebida textualmente no artigo que trata da “educação integral da prole” como “o primeiro dever e o direito natural dos pais”. Em tal contexto, “o Estado não será estranho a esse dever, colaborando, de maneira principal ou subsidiária, para facilitar a sua execução ou suprir as deficiências e lacunas da educação particular” (CF 1937 e CE 1945, Art. 125).
      O ensino público, nessa perspectiva exerce uma função suplementar, devendo o Estado assegurar “em conseqüência, à infância e à juventude, a que faltarem recursos necessários à educação em instituições particulares, a possibilidade de receber uma educação adequada às suas faculdades, aptidões e tendências vocacionais, fundando instituições de ensino em todos os graus” (CF 1937, Art. 129 e CE 1945, Art. 125, Parágrafo Único).
      Em termos idênticos são também tratadas questões como a obrigatoriedade e a gratuidade do ensino primário, antes discutida (CF 1937, Art. 130 e CE 1945). Coincidência semelhante não ocorre, contudo, em relação ao ensino religioso que permanece “freqüência facultativa” na Constituição Estadual (CE 1945, Art. 127).
      Assim como há dispositivos comuns entre a Constituição Federal de 1937 e a Constituição Estadual de 1945 há também aqueles que são exclusivos do texto cearense. Um deles é a isenção de tributos para “estabelecimentos particulares de educação gratuita, primária ou profissional, oficialmente considerados idôneos” (CE 1945, Art. 128). Embora tal matéria tenha figurado na Constituição Federal de 1934 (CF 1934, Art. 154), não consta da Carta Magna seguinte. Outro tema excluído da Constituição de 1937 refere-se à obrigação das empresas industriais ou agrícolas, localizadas fora dos centros escolares, com mais de cinqüenta empregados de ministrarem “a estes e a seus filhos ensino primário gratuito” (CE 1945, Art. 129).
      O cotejamento entre a Constituição Federal e a Constituição Estadual revela mais semelhanças do que diferenças entre os dois textos. Ambas refletem o clima autoritário do período que, embora no caso da carta de 1945 já esteja em vias de extinção, traduz um contexto pouco propício a uma perspectiva educacional progressista. Tal possibilidade somente se concretizará com o advento das constituições aprovadas sob a égide de um cenário político de redemocratização.

Documentos de política educacional no Ceará: império e República/Organização: Sofia Lerche Vieira e Isabel Maria Sabino de Farias; colaboração: Delane Lima Nogueira...[et al.]. – Brasília; Instituto nacional de Estudos e pesquisas Educacionais AnísioTeixeira, 2006.

A educação na Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1937

      De orientação oposta ao liberal texto de 1934, a Constituição do Estado Novo, é claramente inspirada nas constituições de regimes fascistas europeus. Amplia-se a competência da União para “fixar as bases e determinar os quadros da educação nacional, traçando as diretrizes a que deve obedecer à formação física, intelectual e moral da infância e da juventude” (Art. 15, IX).
      A liberdade de ensino ou, melhor dizendo, a livre iniciativa, é objeto do primeiro artigo dedicado à educação no texto de 1937, que determina: “A arte, a ciência e o ensino são livres à iniciativa individual e à de associações ou pessoas coletivas públicas e particulares” (Art. 128). O dever do Estado para com a educação é colocado em segundo plano, sendo-lhe atribuída uma função compensatória na oferta escolar destinada à “infância e à juventude, a que faltarem os recursos necessários à educação em instituições particulares” (Art. 129). Nesse contexto, o “ensino pré-vocacional e profissional destinado às classes menos favorecidas” é compreendido como “o primeiro dever do Estado” em matéria de educação (Art. 129).
É clara a concepção da educação pública como aquela destinada aos que não puderem arcar com os custos do ensino privado. O velho preconceito contra o ensino público presente desde as origens de nossa história permanece arraigado no pensamento do legislador estadonovista.
      Sendo o ensino vocacional e profissional a prioridade, é flagrante a omissão com relação às demais modalidades de ensino. A concepção da política educacional no Estado Novo estará inteiramente orientada para o ensino profissional, para onde serão dirigidas as reformas encaminhadas por Gustavo Capanema.
À idéia de gratuidade da Constituição de 1934 o texto de 1937 contrapõe uma concepção estreita e empobrecida. Embora estabeleça que “o ensino primário é obrigatório e gratuito” (Art. 130), acrescenta no mesmo artigo o caráter parcial dessa gratuidade que, “não exclui o dever de solidariedade dos menos para com os mais necessitados; assim, por ocasião da matrícula, será exigido aos que não alegarem, ou notoriamente não puderem alegar escassez de recursos, uma contribuição módica e mensal para a caixa escolar”. A educação gratuita é, pois, a educação dos pobres.
      Também em matéria de ensino religioso a Constituição de 1937 assinala uma tendência conservadora no dispositivo que permite que este ensino se apresente como “matéria do curso ordinário das escolas primárias, normais e secundárias” muito embora não deva se “constituir objeto de obrigação dos mestres ou professores, nem de freqüência compulsória por parte dos alunos” (Art. 133). A ambigüidade do texto é óbvia, deixando margem a um facultativo, que acabou por tornar-se compulsório, em se considerando a hegemonia da religião católica sobre as demais, bem como a expressiva presença de escolas confessionais no cenário brasileiro.

Documentos de política educacional no Ceará: império e República/Organização: Sofia Lerche Vieira e Isabel Maria Sabino de Farias; colaboração: Delane Lima Nogueira...[et al.]. – Brasília; Instituto nacional de Estudos e pesquisas Educacionais AnísioTeixeira, 2006.

A educação na Constituição Política do Estado do Ceará de 1935

      A Constituição Estadual de 1935 absorve o espírito da Constituição Federal, dela incorporando diversos conteúdos. Esta sintonia é visível nos dispositivos sobre dever do Estado (CE 1935, Art. 112), direito à educação (CE 1935, Art. 149), criação de conselhos normativos para a educação (CE 1935, Art. 152), ensino religioso (CE 1935, Art. 153), vinculação de receitas (CE 1935, Art. 156), fundos de educação (CE 1935, Art. 157), ensino em língua pátria (CE 1935, Art. 150, d), concurso público como forma de ingresso no magistério oficial (CE 1935, Art. 158) e obrigação de oferta de ensino primário gratuito por empresas com mais de 50 empregados (CE 1935, Art. 120).
      O texto de 1935 destaca-se ainda por um conjunto significativo de temas que revelam peculiaridades da educação cearense. Em primeiro lugar, chama atenção a criação de “conselhos técnicos” como “órgãos autônomos em cooperação com os poderes do Estado” (CE 1935, Art. 72). Tal organização é prevista para as áreas de Assistência Social, Educação, Cultura, Ordem Econômica e Financeira.
      Outro aspecto inovador é a criação de um Departamento de Ensino Rural (CE 1935, Art. 113, Parágrafo Único) para o qual são previstos recursos financeiros (CE 1935, Art. 116, § 1°). Talvez seja por força de tal preocupação que se tenha viabilizado a criação das escolas normais rurais, cujos prédios ainda hoje integram o parque escolar estadual, a exemplo da Escola de Ensino Fundamental Moreira de Souza, em Juazeiro.
A gratuidade do ensino para alunos pobres é uma preocupação do texto de 1935. Está expressa em dispositivos relativos à destinação de parte do fundo de educação para “auxilio a alunos necessitados, mediante o fornecimento gratuito de material escolar, bolsa de estudo, assistência alimentar, dentaria e medica, e para vilegiaturas”, bem como na isenção de cobrança de “taxas e emolumentos dos estudantes provadamente pobres dos cursos primário, secundário e superior dos estabelecimentos de ensino oficial ou oficializados” (CE 1935, Art. 115, § 2º e 3°).
A atenção ao financiamento, expressa na Constituição Estadual de 1935 começa a anunciar importante definição que se explicitará em textos posteriores – o dever do Estado. Tal dimensão pode ser detectada no artigo que atribui percentuais distintos de aplicação de recursos por parte do Estado e dos Municípios, cabendo a estes aplicar 10% de suas receitas e àquele 20%. Outro aspecto referente à matéria a mencionar é que “os auxílios concedidos pelo governo do Estado e do Município aos estabelecimentos de ensino serão dados, de preferência, sob a forma de dotações destinadas a bens patrimoniais” (CE 1935, Art. 116, § 2°)
      Alguns dispositivos tratam especificamente da questão do magistério. Como se viu antes, o concurso público é matéria comum à Constituição Federal e à Estadual. Entretanto, a vitaliciedade e inamovibilidade dos professores (CE 1935, Art. 119, § 2°) é uma peculiaridade do texto cearense. Outro aspecto interessante é a intenção de preservar a estabilidade de professores também na escola particular, como se vê no requisito de que “os estabelecimentos de ensino particular, para serem reconhecidos pelo Estado, ou equiparados aos institutos oficiais, devem, durante todo o tempo do seu funcionamento, assegurar a estabilidade dos professores, que tenham mais de dois anos de serviço e proporcionar-lhes remuneração condigna, inclusive no período de férias” (CE 1935, Art. 117).
      A análise empreendida revela uma presença significativa da educação na Constituição de 1935. Esta tendência traduz uma aspiração social manifesta a partir dos anos trinta passa, quando as demandas por escolarização passam a se materializar de forma mais objetiva do que em momentos anteriores da história. É nesse cenário que o papel do Estado na oferta de serviços educacionais vai, aos poucos, tomando corpo. Texto e contexto, assim, articulam-se mutuamente, ainda que a Constituição expresse muito mais uma vontade de mudar do que a própria mudança.

Documentos de política educacional no Ceará: império e República/Organização: Sofia Lerche Vieira e Isabel Maria Sabino de Farias; colaboração: Delane Lima Nogueira...[et al.]. – Brasília; Instituto nacional de Estudos e pesquisas Educacionais AnísioTeixeira, 2006.

A educação na Constituição Política do Estado do Ceará de 1925

      É nesse contexto que vem à luz a Constituição Estadual de 1925. Para a educação não traz novidades. Apresenta praticamente os mesmos dispositivos do texto de 1921. São mantidas as atribuições da Assembléia Legislativa, permanecendo sua competência privativa para “decretar as leis e resoluções necessárias ao exercício dos poderes pertencentes ao Estado”, especialmente aquelas referentes à “instrução pública” (CE 1925, Art. 24, § 5°, f). Também estão presentes as atribuições relativas ao Município no que se refere à competência das Câmaras Municipais para “criar escolas de instrução primária e profissional, reservando para este serviço dez por cento, pelo menos, de suas rendas” (CE 1925, Art. 94, § 13). É bom lembrar que esse dispositivo antecipa o importante tema do financiamento da educação, que somente viria a ser tratado na Constituição Federal de 1934.
      A Constituição Estadual de 1925 inova ao estabelecer a competência privativa do Presidente do Estado para “fiscalizar a aplicação da parte das rendas municipais destinada à instrução pública” (CE 1925, Art. 56, § 20). No que se refere ao provimento para cargos do serviço público é mantida a excepcionalidade concedida aos “diretores de ensino” e inspetores escolares quanto à exigência de concurso público como mecanismo de ingresso (CE 1925, Art. 114, § 1o., “d” e “g”). O texto estabelece ainda que os membros do magistério primário sejam regidos por lei específica (CE 1925, Art. 115, §1°, b) e que os professores do ensino superior ou secundário são vitalícios (CE 1925, Art. 115, §1°, c).
       A análise do texto de 1925 permite constatar o distanciamento entre os dispositivos constitucionais e as medidas que vinham sendo adotadas através da Reforma de 1922. Percebe-se, assim, um sensível descompasso entre o Legislativo e o Executivo.

Documentos de política educacional no Ceará: império e República/Organização: Sofia Lerche Vieira e Isabel Maria Sabino de Farias; colaboração: Delane Lima Nogueira...[et al.]. – Brasília; Instituto nacional de Estudos e pesquisas Educacionais AnísioTeixeira, 2006.

A educação na Constituição Política do Estado do Ceará de 1921

      A educação é matéria incipiente na Constituição Estadual de 1921. As atribuições da Assembléia Legislativa são mantidas, sendo sua competência privativa “decretar as leis e resoluções necessárias ao exercício dos poderes pertencentes ao Estado”, especialmente aquelas referentes à “instrução pública” (CE 1921, Art. 24, f). Uma novidade é o estabelecimento de atribuições relativas ao Município, sendo definida como competências das Câmaras Municipais “criar escolas de instrução primária e profissional, reservando para este serviço dez por cento, pelo menos, de suas rendas” (CE 1921, Art. 94, § 13). Tal dispositivo, retomado na Constituição Estadual de 1925, anteciparia o importante tema do financiamento da educação, que somente viria a ser tratado na Constituição Federal de 1934.
      Os demais artigos referentes à educação na Constituição Estadual de 1921 repetem assuntos tratados em textos anteriores: a proibição do voto aos analfabetos (CE 1921, Art. 107, § 1o.) e a excepcionalidade concedida aos “diretores de ensino” no que se refere à exigência de concurso público como mecanismo de ingresso ao serviço público (Ce 1921, Art. 114, § 1o.).
      Em termos de conteúdos relativos à educação, a Constituição Estadual de 1921 encontra-se aquém de outros instrumentos legais concebidos no período, a exemplo do Regulamento da Instrução Primária do Estado do Ceará (1905) e do Regimento Interno das Escolas Públicas do Ensino Primário (1915), que preparam o terreno para as reformas que irão ser propostas nos anos subseqüentes. Configura-se, assim, um hiato entre o Legislativo e as mudanças que começam a se manifestar no Ceará.

Documentos de política educacional no Ceará: império e República/Organização: Sofia Lerche Vieira e Isabel Maria Sabino de Farias; colaboração: Delane Lima Nogueira...[et al.]. – Brasília; Instituto nacional de Estudos e pesquisas Educacionais AnísioTeixeira, 2006.

A educação na Constituição do Estado do Ceará de 1892

       A Constituição Estadual de 1892 praticamente repete o conteúdo do texto anterior referente à educação. É mantida a atribuição do Congresso para legislar sobre a instrução pública (CF 1892, Art. 29, Inc. 5o.). Diferentemente do texto de 1891, a Carta de 1892 não especifica se esta competência refere-se a “todos os graus” da instrução pública.
       Uma novidade do texto de 1892 diz respeito à vitaliciedade do magistério primário e secundário. Com efeito, trata-se de privilégio que se estende a outras áreas, como a magistratura e a justiça e que já estava em vigor antes da aprovação da matéria, como é possível depreender do artigo que trata do assunto: "continua garantido, em sua plenitude, o direito de vitaliciedade dos magistrados, professores primários e secundários e serventuários da justiça, além do caso do artigo 72" (CE 1892, Art. 133 – Grifo nosso).
       Em termos semelhantes à Carta de 1891 em relação à admissão de servidores públicos por concurso para a primeira nomeação (CE 1891, Art. 97), a Constituição Estadual de 1892 posiciona-se pelo mesmo procedimento, mas faz do provimento de diretores de instrução pública e da Escola Normal uma exceção à regra, ao lado de outros cargos (CE 1892, Art. 150).
A Constituição de 1892 retoma dois importantes temas já tratados na Constituição Estadual de 1891: a liberdade de ensinar e aprender (CE 1892, Art. 144) e a gratuidade da instrução primária (CE 1892, Art. 132). É oportuno mencionar algumas diferenças entre o tratamento desses conteúdos nas constituições em foco. O texto de 1892 traz importante acréscimo no que se refere à gratuidade da instrução primária, a ela incorporando "o ensino elementar das artes e ofícios".
       No que se refere ao tratamento dispensado à liberdade de ensino, tema já abordado em nosso ensaio sobre o texto de 1891 (Ver: Constituição Estadual de 1891, desta coleção) há também algo de novo a notar. Aqui, diferentemente do que se vê na Carta Magna anterior, não se fala apenas na liberdade de ensinar, mas também de aprender, como se vê na passagem que dispõe sobre o assunto: "É garantida a liberdade de aprender e ensinar, sem ofensas à moral e sem prejuízo da segurança e higiene pública" (CE 1892, Art. 144). Sobre o possível caráter inusitado dos termos associados à "liberdade de ensino", vale lembrar a importância de ter uma compreensão histórica da questão. Articular educação à moral, segurança e higiene não é algo estranho ao contexto da época.
      Como se pode verificar, embora a Constituição de 1892 não chegue a dispensar uma atenção especial à educação, os artigos nela inscritos evidenciam a relevância dos mesmos para o período, mostrando seu significado histórico para a educação no Brasil e no Ceará.
Documentos de política educacional no Ceará: império e República/Organização: Sofia Lerche Vieira e Isabel Maria Sabino de Farias; colaboração: Delane Lima Nogueira...[et al.]. – Brasília; Instituto nacional de Estudos e pesquisas Educacionais AnísioTeixeira, 2006.

A educação na Constituição do Estado do Ceará de 1891

                    A Constituição Estadual de 1891 apresenta cinco dispositivos que tratam direta ou indiretamente da educação. É definida como atribuição do Congresso “legislar sobre a instrução pública em todos os seus graus” (CE 1891, Art. 19, § 11). O direito do voto é assegurado apenas àqueles que sabem ler e escrever (CE 1891, Art. 73). Do mesmo modo, o alistamento de estrangeiros para participar das eleições municipais é restrito aos que saibam ler e escrever (CE 1891, Art. 76). São também abordados os temas da liberdade de ensino (CE 1891, Art. 85, § 4º.) e da gratuidade (CE 1891, Art. 95), princípios que estiveram presentes em praticamente todas as constituições republicanas. O tema da “liberdade de ensino”, de conotação histórica ímpar para a educação brasileira, é elemento chave na compreensão da legislação nacional e local.
                          Essa expressão aparentemente singela traduziu ao longo do tempo uma das grandes antinomias da educação4 – o conflito entre o público e o privado. Seu ápice se expressou na polêmica travada entre publicistas e privatistas a partir da Constituição de 1946, prolongando-se pelas décadas seguintes do século XX, através do debate em torno da primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei N° 4.024/61).
                                Face ao exposto, há de se supor que a “liberdade de ensino” referida na Constituição Estadual de 1891 reporta-se ao direito da oferta de ensino privado. É interessante notar que o tema é tratado em um contexto mais amplo uma vez que o artigo fala de “liberdade profissional e de ensino, sem ofensa à moral e sem prejuízo da segurança e higiene pública” (CE 1891, Art. 85, § 4º. Grifo nosso). Aqui, cabe assinalar uma característica da época, onde o tema aparece associado à moral, à segurança e à higiene.
                       Quanto à questão da gratuidade, assim como já visto em relação à liberdade de ensino, trata-se de um tema recorrente na política educacional brasileira. Assim, seu aparecimento na Constituição Estadual de 1891 não surpreende. A primeira Constituição Federal, de 1824, já afirmara que “a instrução primária” seria “gratuita a todos os cidadãos” (CF 1824, Art. 179, Inc. XXXII), matéria sobre a qual a Constituição Federal de 1891 silencia. Não cabe aqui analisar a distância entre proclamar e realizar, mas vale mencionar que a promessa de gratuidade não é absoluta. A matéria restringe-se à educação primária e sob as “condições e pelo modo que a lei estabelecer” (CF 1824, Art. 95). Ou seja, trata-se de uma afirmação que necessitaria ser regulamentada por lei complementar.
                          É verdade que a Constituição de 1891 não chega a ser pródiga em termos de quantidade de artigos apresentados. Abre caminho, entretanto, para identificar a presença de temas de grande relevância para a educação em nosso país como a liberdade de ensino e a gratuidade. Por isso mesmo é oportuno conhecê-la e aprofundá-la.

4 LUZURIAGA, Lorenzo (1960). Diccionario de pedagogía. Buenos Aires: Editorial Losada S.A.

By Coleção Documentos da educação Brasileira (Sofia LercheVieira e Isabel Maria Sabino de Farias

segunda-feira, 16 de maio de 2011

A Fortaleza Belle Époque por Ramos Cotoco


Na segunda metade do século XIX, os setores dominantes buscavam romper com o ar provinciano que se respirava em Fortaleza. Esta idealização toma forma na "civilidade" que a cidade passa a expor após a incorporação dos costumes europeus, sob a influência de Paris. 
No contexto afrancesado de Fortaleza, Ramos Cotoco ensaia sua crítica em várias canções que evocam a sociedade de então. Na canção aqui apresentada na voz de Simone Sousa, o autor critica a vestimenta das moças que envoltas em largos vestidos, em espartilhos e meias passeavam pelas ruas da cidade. Cômico, Cotoco destaca a recente beleza destas.

Por Lenúcia Moura.

quarta-feira, 4 de maio de 2011

História da Educação do Ceará - educação no processo de colonização

Sobre o óbvio


Darcy Ribeiro



                  Nosso tema é o óbvio. Acho mesmo que os cientistas trabalham é com o óbvio. O negócio deles - nosso negócio - é lidar com o óbvio. Aparentemente, Deus é muito treteiro, faz as coisas de forma tão recôndita e disfarçada que se precisa desta categoria de gente - os cientistas - para ir tirando os véus, desvendando, a fim de revelar a obviedade do óbvio. O ruim deste procedimento é que parece um jogo sem fim. De fato, só conseguimos desmascarar uma obviedade para descobrir outras, mais óbvias ainda.

                   Para começar, antes de entrar na obviedade educacional - que é nosso tema - vejamos algumas outras obviedades. É óbvio, por exemplo, que todo santo dia o sol         é verdade. Mas foi preciso muita astúcia e gana para mostrar que a aurora e o crepúsculo são tretas de Deus. Não é assim? Gerações de sábios passaram por sacrifícios, recordados por todos, porque disseram que Deus estava nos enganando com aquele espetáculo diário. Demonstrar que a coisa não era como parecia, além de muito difícil, foi penoso, todos sabemos.

                   Outra obviedade, tão óbvia quanto esta ou mais óbvia ainda, é que os pobres vivem dos ricos. Está na cara? Sem os ricos o que é que seria dos pobres? Quem é que poderia fazer uma caridade? Me dá um empreguinho aí! Seria impossível arranjar qualquer ajuda. Me dá um dinheirinho aí! Sem rico o mundo estaria incompleto, os pobres estariam perdidos. Mas vieram uns Barbados dizendo que não, e atrapalharam tudo. Tiraram aquela obviedade e puseram outra oposta no lugar. Aliás, uma obviedade subversiva.

                   Uma terceira obviedade que vocês conhecem bem, por ser patente, é que os negros são inferiores aos brancos. Basta olhar! Eles fazem um esforço danado para ganhar a vida, mas não ascendem como a gente. Sua situação é de uma inferioridade social e cultural tão visível, tão evidente, que é óbvia. Pois não é assim, dizem os cientistas. Não é assim, não. É diferente! Os negros foram inferiorizados. Foram e continuam sendo postos nessa posição de inferioridade por tais e quais razões históricas. Razões que nada têm a ver com suas capacidades e aptidões inatas mas, sim, tendo que ver com certos interesses muito concretos.
A quarta obviedade, mais difícil de admitir - e eu falei das anteriores para vocês se acostumarem com a idéia - a quarta obviedade, é a obviedade doída de que nós, brasileiros, somos um povo de segunda classe, um povo inferior, chinfrin, vagabundo. Mas tá na cara! Basta olhar! Somos 100 anos mais velhos que os estadunidenses, e estamos com meio século de atraso com relação a eles. A verdade, todos sabemos, é que a colonização da América no Norte começou 100 anos depois da nossa, mas eles hoje estão muito adiante. Nós, atrás, trotando na história, trotando na vida. Um negócio horrível, não é? Durante anos, essa obviedade que foi e continua sendo óbvia para muita gente nos amargurou. Mas não conseguíamos fugir dela, ainda não.

                   A própria ciência, por longo tempo, parecia existir somente para sustentar essa obviedade. A Antropologia, minha ciência, por exemplo, por demasiado tempo não foi mais do que uma doutrina racista, sobre a superioridade do homem branco, europeu e cristão, a destinação civilizatória que pesava sobre seus ombros como um encargo histórico e sagrado. Nem foi menos do que um continuado esforço de erudição para comprovar e demonstrar que a mistura racial, a mestiçagem, conduzida a um produto híbrido inferior, produzindo uma espécie de gente-mula, atrasada e incapaz de promover o progresso. Os antropólogos, coitados, por mais de um século estiveram muito preocupados com isso, e nós, brasileiros, comemos e bebemos essas tolices deles durante décadas, como a melhor ciência do mundo. O próprio Euclides da Cunha não podia dormir porque dizia que o Brasil ou progredia ou desaparecia, mas perguntava: como progredir, com este povo de segunda classe? Dom Pedro II, imperador dos mulatos brasileiros, sofria demais nas conversas com seu amigo e afilhado Gobineau, embaixador da França no Brasil, teórico europeu competentíssimo da inferioridade dos pretos e mestiços.
O mais grave, porém, é que além de ser um povo mestiço - e, portanto, inferior e inapto para o progresso - nós somos também um povo tropical. E tropical não dá! Civilização nos trópicos, não dá! Tropical, é demais. Mas isto não é tudo. Além de mestiços e tropical, outra razão de nossa inferioridade evidente - demonstrada pelo desempenho histórico medíocre dos brasileiros - além dessas razões, havia a de sermos católicos, de um catolicismo barroco, não é? Um negócio atrasado, extravagante, de rezar em latim e confessar em português.
                   Pois, além disso, tudo a nos puxar para trás, havia outras forças, ainda piores, entre elas, a nossa ancestralidade portuguesa. Estão vendo que falta de sorte? Em lugar de avós ingleses, holandeses, gente boa, logo portugueses... Lusitanos! Está na cara que este país não podia ir para frente, que este povo não prestava mesmo, que esta nação estava mesmo condenada: mestiços, tropicais, católicos e lusitanos é dose para elefante.

                   Bom, estas são as obviedades com que convivemos alegre ou sofridamente por muito tempo. Nos últimos anos, porém, descobrimos meio assombrados - descoberta que só se generalizou aí pelos anos 50, mais ou menos - descobrimos realmente ou começamos a atuar como quem sabe, afinal, que aquela óbvia inferioridade racial inata, climático-telúrica, asnal-lusitana e católico-barroca do brasileiro, era como a treta diária do sol que todo dia faz de conta que nasce e se põe. Havíamos descoberto, com mais susto do que alegria, que à luz das novas ciências, nenhuma daquelas teses se mantinha de pé. Desde então, tornando-se impossível, a partir delas, explicar confortavelmente todo o nosso atraso, atribuindo-o ao povo, saímos em busca de outros fatores ou culpas que fossem as causas do nosso fraco desempenho neste mundo.
                   Nesta indagação - vejam como é ruim questionar! - acabamos por dar uma virada prodigiosa na roleta da ciência. Ela veio revelar que aquela obviedade de sermos um povo de segunda classe não podia mesmo se manter, porque escondia uma outra obviedade mais óbvia ainda. Esta nova verdade nos assustou muito, levamos tempo para engolir a novidade. Sobretudo nós, bonitos. Falo da descoberta de que a causa real do atraso brasileiro, os culpados de nosso subdesenvolvimento somos nós mesmos, ou melhor, a melhor parte de nós mesmos: nossa classe dominante e seus comparsas. Descobrimos também, com susto, à luz dessa nova obviedade, que realmente não há país construído mais racionalmente por uma classe dominante do que o nosso. Nem há sociedade que corresponda tão precisado aos interesses de sua classe dominante como o Brasil.

                  Assim é que, desde então, lamentavelmente, já não há como negar dois fatos que ficaram ululantemente óbvios. Primeiro, que não é nas qualidades ou defeitos do povo que está a razão do nosso atraso, mas nas características de nossas classes dominantes, no seu setor dirigente e, inclusive, no seu segmento intelectual. Segundo, que nossa velha classe tem sido altamente capaz na formulação e na execução de projeto de sociedade que melhor corresponde a seus interesses. Só que este projeto para ser implantado e mantido precisa de um povo faminto, chucro e feio.

                   Nunca se viu, em outra parte, ricos tão capacitados para gerar e desfrutar riquezas, e para sub-julgar o povo faminto no trabalho, como os nossos senhores empresários, doutores e comandantes. Quase sempre cordiais uns para com os outros, sempre duros e implacáveis para com subalternos, e insaciáveis na apropriação dos frutos do trabalho alheio. Eles tramam e retramam, há séculos, a malha estreita dentro da qual cresce, deformado, o povo brasileiro. Deformado e constrangido e atrasado. E assim é, sabemos agora, porque só assim a velha classe pode manter, sem sobressaltos, este tipo de prosperidade de que ela desfruta, uma prosperidade jamais generalizável aos que a produzem com o seu trabalho, mas uma prosperidade sempre suficiente para reproduzir, geração após geração, a riqueza, a distinção e a beleza de nossos ricos, suas mulheres e filhos.
                   Por esta razão, é que a segunda parte desta minha fala será o elogio da classe dominante brasileira. O que aspiramos, objetivamente, é retratá-la aqui em toda a sua alta competência. Mais até do que competente, acho que ela é façanhuda, porque fez coisas tão admiráveis e únicas ao longo dos século, que merece não apenas nossa admiração, mas também nosso espanto.
                   A primeira evidência a ressaltar é que nossa classe dominante conseguiu estruturar o Brasil como uma sociedade de economia extraordinariamente próspera. Por muito tempo se pensou que éramos e somos um país pobre, no passado e agora. Pois não é verdade. Esta é uma falsa obviedade. Éramos e somos riquíssimos! A renda per capita dos escravos de Pernambuco, da Bahia e de Minas Gerais - eles duravam em média uns cinco anos no trabalho - mas a renda per capita dos nossos escravos era, então, a mais alta do mundo. Nenhum trabalhador, naqueles séculos, na Europa ou na Ásia, rendia em libras - que eram os dólares da época - como um escravo trabalhando num engenho no Recife; ou lavrando ouro em Minas Gerais; ou, depois, um escravo, ou mesmo um imigrante italiano, trabalhando num cafezal em São Paulo. Aqueles empreendimentos foram um sucesso formidável. Geraram além de um PIB prodigioso, uma renda per capita admirável. Então, como agora, para uso e gozo de nossa sábia classe dominante.
                   A verdade verdadeira é que, aqui no Brasil, se inventou um modelo de economia altamente próspera, mas de prosperidade pura. Quer dizer, livre de quaisquer comprometimentos sentimentais. A verdade, repito, é que nós, brasileiros, inventamos e fundamos um sistema social perfeito para os que estão do lado de cima da vida. Senão, vejamos. O valor da exportação brasileira no século XVII foi maior que o da exportação inglesa no mesmo período. O produto mais nobre da época era o açúcar. Depois, o produto mais rendoso do mundo foi o ouro de Minas Gerais que multiplicou várias vezes a quantidade de ouro existente no mundo. Também, então, reinou para os ricos uma prosperidade imensa. O café, por sua vez, foi o produto mais importante do mercado mundial até 1913, e nós desfrutamos, por longo tempo, o monopólio dele. Nestes três casos, que correspondem a conjunturas quase seculares, nós tivemos e desfrutamos uma prosperidade enorme. Depois, por algumas décadas, a borracha e o cacau deram também surtos invejáveis de prosperidade que enriqueceram e dignificaram as camadas proprietárias e dirigentes de diversas regiões. O importante a assinalar é que, modéstia à parte, aqui no Brasil se tinha inventado ou ressuscitado uma economia especialíssima, fundada num sistema de trabalho que, compelindo o povo a produzir, o que ele não consumia - produzir para exportar - permitia gerar uma prosperidade não generosa, ainda que propensa desde então, a uma redistribuição preterida.

                  Enquanto isso se fez debaixo dos sólidos estatutos da escravidão, não houve problema. Depois, porém, o povo trabalhador começou a dar trabalho, porque tinha de ser convencido na lei ou na marra, de que seu reino não era para agora, que ele verdadeiramente não podia nem precisava comer hoje. Porém o que ele não come hoje, comerá acrescido amanhã. Porque só acumulando agora, sem nada desperdiçar comendo, se poderá progredir amanhã e sempre. O povão, hoje como ontem, sempre andou muito desconfiado de que jamais comerá depois de amanhã o feijão que deixou de comer anteontem. Mas as classes dominantes e seus competentes auxiliares, aí estão para convencer a todos - com pesquisas, programas e promoções - de que o importante é exportar, de que é indispensável e patriótico ter paciência, esperem um pouco, não sejam imediatistas. O bolo precisa crescer; sem um bolo maior - nos dizem o Delfim lá de Paris e o daqui - sem um bolo acrescido, este país estará perdido. É preciso um bolo respeitável, é indispensável uma poupança ponderável, uma acumulação milagrosa para que depois se faça, amanhã, prodigiosamente, a distribuição.
                   Bem, esta classe dominante promotora da prosperidade restrita e do progresso contido, realizou verdadeiras façanhas com sua extraordinária habilidade. A primeira foi a própria Independência do Brasil, que se deu, de fato, antes de qualquer outra na América Latina, pois ocorreu no momento em que Napoleão enxotava a família real de Portugal. Com ela saem de Lisboa 15.000 fâmulos. Imaginem só o que representou isto como empreendimento? Não falo de epopéia de transladar esta multidão de gentes para além-mar, - afinal, mais negros se importava todo ano. Falo da invasão do Brasil por 15.000 pessoas das famílias nobres de Portugal. Foi como refundar o país, pelo menos o país dominante.
                   Com eles nos vinha, de graça, toda aquela secular sabedoria política lusitana de viver e sobreviver ao lado dos espanhóis, sem conviver nem brigar com eles. Toda aquela sagacidade burocrática, toda aquela cobiça senhorial com seu espantoso apetite de enricar e de mandar. Portugal, em sua generosidade, nos legava, na hora do declínio, sua nobreza mais nobre. Aquela cujo luxo já estávamos habituados a pagar, para ela aqui continuar regendo uma sociedade confortável! para si própria como o fora o velho reino, e até mais próspera.
                   O resultado imediato desta transladação da sabedoria classista portuguesa foi a capacidade, prontamente revelada, pela velha classe dominante - agora nova e nossa - em episódios fundamentais. Primeiro o de resguardar a unidade nacional que foi o seu grande feito. Tanto mais em relação ao que sucedeu à América Espanhola que, sem-rei-nem-lei se balcanizou rapidamente. O Brasil, que estava também dividido em regiões e administrações coloniais igualmente diferenciadas, conseguiu, graças a essa sabedoria, preservar sua unidade para surgir ao mundo com as dimensões gigantescas de que tanto nos orgulhamos hoje.
                   A outra façanha da velha classe, foi sua extraordinária capacidade de enfrentar e vencer todas as revoluções sociais que se desencadearam no país. Essa eficiência repressiva lhes permitia esmagar todos os que reclamavam o alargamento das bases da sociedade, para que mais gente participasse do produto do trabalho e, assim, reafirmar e consolidar sua hegemonia. Posteriormente, coroaram tal feito com outro ainda maior, que foi o de escrever a história dessas lutas sociais como se elas fossem motins.

                   Recentemente descobrimos, outra vez assustados - desta vez graças às perquirições de José Honório - que o Brasil não é tão cordial como quereria o nosso querido Sérgio. Durante o período das revoltas sociais anteriores e seguintes à Independência, morreram no Brasil mais de 50 mil pessoas, inclusive uns sete padres enforcados. O certo é que nossos 50 mil mortos são muitos mais mortos do que todos que morreram nas lutas de independência da América Espanhola, tidas como das mais cruentas da história. Os nossos, porém, foram surrupiados da história oficial das lutas sociais por serem vítimas de meros motins, revoltas e levantes e, como tal, não merecem entrar na crônica historiográfica séria da sabedoria classista.
                   Além destas grandes façanhas, nossa classe dominante acometeu tarefas gigantescas com uma sabedoria crescente, que eu tenho o dever de assinalar nesta louvação. Façanha sobremodo admirável, foi a nossa Lei de Terras, aprovada em 1850, quer dizer, 10 anos antes da América do Norte estatuir o homestead, que é a lei de terras lá deles.
                   A lei brasileira não só foi anterior, como muito mais sábia. Sua sagacidade se revela inteira na diferença de conteúdo social com respeito à legislação da América do Norte, bem demonstrativo da capacidade da nossa classe dominante para formular e instituir a racionalidade que mais convém à imposição de seus altos interesses. A classe dominante brasileira inscreve na Lei de Terras um juízo muito simples: a forma normal de obtenção da prioridade é a compra. Se você quer ser proprietário, deve comprar suas terras do Estado ou de quem quer que seja, que as possua a título legítimo. Comprar! É certo que estabelece generosamente uma exceção carterial: o chamado usucapião. Se você puder provar, diante do escrivão competente, que ocupou continuadamente, por 10 ou 20 anos, um pedaço de terra, talvez consiga que o cartório o registre como de sua propriedade legítima. Como nenhum caboclo vai encontrar esse cartório, quase ninguém registrou jamais terra nenhuma por esta via. Em conseqüência, a boa terra não se dispersou e todas as terras alcançadas pelas fronteiras da civilização, foram competentemente apropriadas pelos antigos proprietários que, aquinhoados, puderam fazer de seus filhos e netos outros tantos fazendeiros latifundiários.

                  Foi assim, brilhantemente, que a nossa classe dominante conseguiu duas coisas básicas: se assegurou a propriedade monopolística da terra para suas empresas agrárias, e assegurou que a população trabalharia docilmente para ela, porque só podia sair de uma fazenda para cair em outra fazenda igual, uma vez que em lugar nenhum conseguiria terras para ocupar e fazer suas pelo trabalho.

                    A classe dominante norte-americana, menos previdente e quiçá mais ingênua, estabeleceu que a forma normal de obtenção de propriedade rural era a posse e a ocupação das terras por quem fosse para o Oeste - como se vê nos filmes de faroeste. Qualquer pioneiro podia demarcar cento e tantos acres e ali se instalar com a família, porque só o fato de morar e trabalhar a terra fazia propriedade sua. O resultado foi que lá multiplicou um imenso sistema de pequenas e médias propriedades que criou e generalizou para milhões de modestos granjeiros uma prosperidade geral. Geral mas medíocre, porque trabalhadas por seus próprios donos, sem nenhuma possibilidade de edificar Casas-grandes & Senzalas grandiosas como as nossas. É notório que aqui foram melhor preservados os interesses da classe dominante que graças à sua previdência, pôde viver e legar com prosperidade e exuberância. Em conseqüência, os ricos daqui vivem uma vida muito mais rica do que os ricos de lá, comendo melhor, servidos por uma famulagem mais ampla e carinhosa. Como se vê, tudo foi feito com muito mais sabedoria, prevendo-se até a invenção da mucama que nos amamentaria de leite e de ternura.

                    O alto estilo da classe dominante brasileira só se revela, porém, em toda a sua astúcia na questão da escravidão. A Revolução Industrial que vinha desabrochando trazia como novidade maior tornar inútil, obsoleto, o trabalho muscular como fonte energética. A civilização já não precisava mais se basear no músculo de asnos e de homens. Agora tinha o carvão, que podia queimar para dar energia, depois viriam a eletricidade e, mais tarde, o petróleo. Isso é o que a Revolução Industrial deu ao mundo. Mas os senhores brasileiros, sabiamente, ponderaram: - Não! Não é possível, com tanto negro à toa aqui e na África, podendo trabalhar para nós, e assim, ser catequizado e salvo, seria uma maldade trocá-los por carvão e petróleo. Dito e feito, o Brasil conseguiu estender tanto o regime escravocrata, que foi o último país do mundo a abolir a escravidão.
 O mais assinalável, porém, como demonstração de agudeza senhorial, é que ao extingui-la, o fizemos mais sabiamente que qualquer outro país. Primeiro, libertamos os donos da onerosa obrigação de alimentar os filhos dos escravos que seriam livres. Hoje festejamos este feito com a Lei do Ventre-Livre. Depois, libertamos os mesmos donos do encargo inútil de sustentar os negros velhos que sobreviveram ao desgaste no trabalho, comemorando também este feito como uma conquista libertária. Como se vê, estamos diante de uma classe dirigente armada de uma sabedoria atroz.

                    Com a própria industrialização, no passado e no presente, conseguimos fazer treta. Nisto parecemos deuses gregos. A treta, no caso, consistiu em subverter sua propensão natural, para não desnaturar a sociedade que a acolhia. A industrialização, que é sabidamente um processo de transformação da sociedade de caráter libertário, entre nós se converteu num mecanismo de recolonização. Primeiro, com as empresas inglesas, depois com as yankees e, finalmente, com as ditas multinacionais. O certo é que o processo de industrialização à brasileira consistiu em transformar a classe dominante nacional de uma representação colonial aqui sediada, numa classe dominante gerencial, cuja função agora é recolonizar país, através das multinacionais. Isto é também uma façanha formidável, que se está levando a cabo enorme elegância e extraordinária eficácia.
A eficácia total, entretanto, eficácia diante da qual devemos nos declinar - aquela que é realmente o grande feito que nós, brasileiros, podemos ostentar diante do mundo como único - é a façanha educacional da nossa classe dominante. Esta é realmente extraordinária! E por isto é que eu não concordo com aqueles que, olhando a educação desde outra perspectiva, falam de fracasso brasileiro no esforço por universalizar o ensino. Eu acho que não houve fracasso algum nesta matéria, mesmo porque o principal requisito de sobrevivência e de hegemonia da classe dominante que temos era precisamente manter o povo chucro. Um povo chucro, neste mundo que generaliza tonta e alegremente a educação, é, sem dúvida, fenomenal. Mantido ignorante, ele não estará capacitado a eleger seus dirigentes com riscos inadmissíveis de populismo demagógico. Perpetua-se, em conseqüência, a sábia tutela que a elite educada, ilustrada, elegante, bonita, exerce paternalmente sobre as massas ignoradas. Tutela cada vez mais necessária porque, com o progresso das comunicações, aumentam dia-a-dia os riscos do nosso povo se ver atraído ao engodo comunista ou fascista, ou trabalhista, ou sindical, ou outro. Assim se vê o equívoco em que recai quem trata como fracasso do Brasil em educar seu povo o que de fato foi uma façanha. Pedro II, por exemplo, nosso preclaro imperador, nunca se equivocou a respeito. Nos dias que a Argentina, o Chile e o Uruguai generalizavam a educação primária dentro do espírito de formar cidadãos para edificar a nação, naquelas eras, nosso sábio Pedro criava duas únicas instituições educacionais: o Instituto de Surdos e Mudos, e o Instituto Imperial dos Cegos. Aliás, diga-se de passagem, o segundo deles, mais tarde, por mãos de outro Pedro monárquico - o Calmon - passou a servir de sede - é um edifício muito bonito - à reitoria da então chamada Universidade do Brasil. Antes tiraram os cegos de lá, naturalmente.

                   Duas são as vias históricas de popularização do ensino elementar. Primeiro, a luterana, que se dá com a conversão da leitura da Bíblia no supremo ato de fé. Disto resulta um tipo de educação comunitária em que cada população local, municipal, trabalhada pela Reforma, faz da igreja sua escola e ensina ali a rezar, ou seja, a ler. Esta é a educação que generalizou na Alemanha e, mais tarde, nos Estados Unidos, como educação comunitária.
A outra forma de generalização do ensino primário foi a cívica, napoleônica, promovida pelo Estado, fruto da Revolução Francesa, que se dispôs a alfabetizar os franceses para deles fazer cidadãos. Aqueles franceses todos, divididos em bretões, flamengos, occipitães, etc., aquela quantidade de gente provinciana, falando dialetos atravancados, não agravada a Napoleão. Ele inventou, então, esta coisa formidavelmente simples, que é a escola pública regida por uma professorinha primária, preparada num internato, para a tarefa de formar cidadãos. Foi ela, com o giz e o quadro-negro, que desasnou os franceses, e desasnando, os faz cidadãos, ao mesmo tempo em que generalizava a educação.
Como se vê, temos duas formas básicas de promover a educação popular: uma, religiosa, que é comunitária, municipal; outra, cívica, que é estatal e, em conseqüência, federal. O Brasil, com os dois pedros imperiais, e todos os presidentes civis e todos os governantes militares e que os sucederam de então até hoje, apesar de católico, adota forma comunitária luterana. Ou seja, entrega a educação fundamental exatamente aos menos interessados em educar o povo, ao governo municipal e ao estadual.

                   Pois bem, prestem atenção, e se edifiquem com a sabedoria que os nossos maiores revelam neste passo: ao entregar a educação primária exatamente àqueles que não queriam educar ninguém - porque achavam uma inutilidade ensinar o povo a ler, escrever e contar - ao entregar exatamente a eles - ao prefeito e ao governador - a tarefa de generalizar a educação primária, a condenavam ao fracasso, tudo isso sem admitir, jamais, que seu imposto era precisamente este.
O professor Oracy Nogueira nos conta que a nobre vila de Itapetininga, ilustre cidade de São Paulo, em meados do século passado, fez um pedido veemente a Pedro Dois: queria uma escola de primeiras letras. E a queria com fervor, porque ali - argumentava - havia vários homens bons, paulistas de quatro e até de quarenta costados, e nenhum deles podia servir na Câmara Municipal, porque não sabiam assinar o nome. Queria uma escola de alfabetização para fazer vereador, não uma escola para ensinar todo o povo a ler, escrever e contar. Vejam a diferença que há entre a nossa orientação educacional e as outras tradições. Aqui, sabiamente, uma vila quer e pede escola, mas não quer rezar, nem democratizar, o que deseja é formar a sua liderança política, é capacitar a sua classe dominante sem nenhuma idéia de generalizar a educação.

                   Como não admirar a classe desta nossa velha classe que no caso da terra, adota uma solução oposta à granjeira norte-americana; e no caso da educação, adota exatamente a solução comunitária yankee... Varia nos dois casos para não variar. Isto é, para continuar atendendo aos seus dois interesses cruciais: a apropriação latifundiária da terra e a santa ignorância popular.
Mas a amplitude de critérios não pára aí, visto que para o ensino superior se fez o contrário. A escola superior, e não a primária, é que foi estruturada no Brasil segundo uma orientação napoleônica. Como os franceses, criamos uma universidade que não era universidade, mas um conglomerado de escolas autárquicas. Napoleão precisou fazer isto, talvez, para liquidar a vetustez da universidade medieval, porque ela estava dominada, contaminada, impregnada da teologia de então. Era preciso romper aquele quadro medieval para progredir. Para isto, a burguesia criou as grandes escolas nacionais, formadoras de profissionais, advogados, médicos, engenheiros, assépticos de qualquer teologismo.
O Brasil não tinha tido uma universidade. Começa pelas grandes escolas. Recorde-se que as dezenas de universidades do mundo hispano-americano foram criadas a partir de 1.550, formando (...) . No Brasil, quem tinha dinheiro para educar o filho em nível superior, mandava-o para Coimbra. Como eram poucos os abastados, em todo o período colonial, apenas conseguimos formar uns 2.800 bacharéis e médicos. Isto significa que, por ocasião da Independência, devia haver, se tanto, uns 2.000 brasileiros com formação superior, aspirando a cargos e mordomias. Havia, por conseqüência, um vasto lugar para aqueles 15.000 fâmulos reais que caíram sobre o Rio de Janeiro, a Bahia e o Recife, convertendo-se, rapidamente, no setor hegemônico da classe dominante, classe dirigente, do país, logo aquinhoada com sesmarias latifundiárias e vasta escravista.
O Brasil cria as suas primeiras escolas depois do desembarque da Corte. E as cria para formar um famulário local. Mas as organiza segundo o modelo napoleônico, federal e não municipalmente. Elas nascem como criações do governo central, estruturadas em escolas superiores autárquicas que não queriam ser aglutinadas em universidades. Nossa primeira universidade, só se (...) em 1.923. E se cria por decreto, por uma razão muito importante, ainda que extra-educacional: o rei da Bélgica visitava o Brasil, e o Itamarati devia dar a ele o título de Doutor Honoris causa. Não podendo honrar ao reizinho como o protocolo recomendava, porque não tínhamos uma universidade, criou-se para isto a Universidade do Brasil. Assim, Leopoldo se fez doutor aqui também. Assim foi criada a primeira universidade brasileira. Uma universidade que, desde então, se vem estruturando e desestruturando, como se sabe.

                    Mas o modelo se multiplicou prodigiosamente como os peixes do Senhor. Hoje contamos com mais centena de universidade e milhares de cursos superiores onde já estuda mais de um milhão de jovens. São tantos, que já há quem diga que nossas universidades enfrentam uma verdadeira crise de crescimento, asseverando mesmo que seu problema decorre de haver matriculado gente demais. Teriam elas crescido com tanta demasia que, agora, não podendo digerir o que têm na barriga, jibóiam. Eu acho que o conceito de crise-de-crescimento não expressa bem o fenômeno. Nosso caso é outro. O que ocorre com a universidade no Brasil é mais ou menos o que sucederia com uma vaca se, quando bezerra, ela fosse encerrada numa jaula pequenina. A vaca mesmo está crescendo naturalmente, mas a jaula de ferro aí está, contendo, constringindo. Então o que cresce é um bicho raro, estranho. Este bicho nunca visto é o produto, é o fruto, é a flor acadêmica dessa classe dominante sábia, preclara, admirável que temos, que nos serve e a que servimos patrioticamente contritos. Cremos haver demonstrado até aqui que no campo da educação é que melhor se concretiza a sabedoria das nossas classes dominantes e sua extraordinária astúcia na defesa de seus interesses. De fato, uma minoria tão insignificante e tão claramente voltada contra os interesses da maioria, só pode sobreviver e prosperar contando com enorme sagacidade, enorme sabedoria, que é preciso compreender e proclamar.
Sua última façanha neste terreno, sobre a qual, aliás muito se comenta - às vezes, até de forma negativa - foi a mobralização da nossa educação elementar. A nosso ver, o MOBRAL é uma obra maravilhosa de previdência e sabedoria. Com efeito, é a solução perfeita. Quem se ocupe em pensar um minuto que seja sobre o tema, verá que é óbvio que quem acaba com o analfabetismo adulto é a morte. Esta é a solução natural. Não se precisa matar ninguém, não se assustem! Quem mata é a própria vida, que traz em si o germe da morte. Todos sabem que a maior parte dos analfabetos está concentrada nas camadas mais velhas e mais pobres da população. Sabe-se, também, que esse pessoal vive pouco, porque come pouco. Sendo assim, basta esperar alguns anos e se acaba com o analfabetismo. Mas só se acaba com a condição de que não se produzem novos analfabetos. Para tanto, tem-se que dar prioridade total, federal, à não-produção de analfabetos. Pegar, caçar (com e cedilha) todos os meninos de sete anos para matricular na escola primária, aos cuidados de professores capazes e devotados, a fim de não mais produzir analfabetos. Porém, se se escolarizasse a criançada toda, e se o sistema continuasse matando os velhinhos analfabetos com que contamos, aí pelo ano 2.000 não teríamos mais um só analfabeto. Percebem agora onde está o nó da questão?

                   Graças ao MOBRAL estamos salvos! Sem ele a classe dominante estaria talvez perdida. Imagine-se o ano 2.000, sem analfabetos no Brasil! Seria um absurdo! Não, graças à previdência de criar para alfabetizar um órgão que não alfabetiza, de não gastar os escassos recursos destinados à educação onde se deveria gastar, de não investir onde se deveria investir - se o propósito fosse generalizar a educação primária - podemos contar com a garantia plena de que manteremos crescente o número absoluto de analfabetos de nosso país.
Também edificante, no caso do MOBRAL, é ele se haver convertido numa das maiores editoras do mundo. Com efeito, a tiragem de suas edições se conta por centenas de milhões. É espantoso, mas verdadeiro: neste nosso Brasil, se não são os analfabetos os que mais lêem, é a eles que se destina a maior parte dos livros, folhetins, livrinhos coloridos que se publica oficialmente, maravilhoso, em quantidades astronômicas. Pode-se mesmo afirmar que o maior empreendimento eleitoral - eleitoral, não editorial - do país é o MOBRAL, como instituição educativa e como co-editora.

                   Naturalmente que há nisto implicações. Uma delas, a originalidade ou o contraste que faremos no ano 2.000. Então, todas as nações organizadas para si mesma s e que vivem como sociedades autônomas, estarão levando a quase totalidade da sua juventude às escolas de nível superior. Neste momento, nos estados Unidos, mais de 70% dos jovens já estão ingressando nos cursos universitários. Cuba, mesmo, - os cubanos são muito pretenciosos - está prometendo matricular toda a sua juventude nas universidades. Primeiro, eles tentaram generalizar o ensino primário. Conseguiram. Generalizaram, depois, o secundário. Agora, ameaçam universalizar o superior. Parece que já no próximo ano todos os jovens que terminam os seis anos de secundário entrarão para a universidade. É claro para isso, a universidade teve de ser totalmente transformada. Desenclaustrada.
                   Meditem um pouco sobre este tema e imaginem o efeito turístico que terá, num mundo em que todos tenham feito curso superior, um Brasil com milhões de analfabetos... Pode ser um negócio muito interessante, não é? Sobretudo se eles continuarem com essas caras tristonhas que tem, com esse ar subnutrido que exibem e que não existirá mais neste mundo. O Brasil poderá então ser de fato, o país do turismo, o único lugar do mundo onde se poderá ver coisas assim, de outros tempos, coisas raras, fenomenais, extravagantes. Em conseqüência, a crise educacional do Brasil da qual tanto se fala, não é uma crise, é um programa. Um programa em curso, cujos frutos, amanhã, falarão por si mesmos.

Fortaleza Ontem e Hoje

Fortaleza década de 20

quarta-feira, 27 de abril de 2011

MOVIMENTOS SOCIO-RELIGIOSOS NORDESTINOS: UM BREVE RESGATE DE SUAS HISTÓRIAS

IV Colóquio Internacional Educação e Contemporaneidade ISSN 1982-3657
MOVIMENTOS SOCIO-RELIGIOSOS NORDESTINOS:
UM BREVE RESGATE DE SUAS HISTÓRIAS
Célia Camelo de Sousa-UECE1
celiacamelods@yahoo.com.br
Lêda Vasconcelos Carvalho-UECE2
ledafor@click21.com

RESUMO
Este trabalho resulta de estudos sobre os movimentos socioreligiosos que eclodiram no Nordeste do Brasil entre os séculos XIX e XX, destacando os movimentos: Canudos-Ba (1893), Caldeirão - CE (1926), Pau de Colher - BA (1934) e Borboletas Azuis - PB (1977). Buscamos resgatar a dinâmica desses movimentos que emergem no campo nordestino em tempos diversos. A metodologia valorizou fontes bibliográficas, documentos escritas e narrativas de homens e mulheres que buscam a preservação da História do sertão nordestino. Da análise destacamos que os movimentos religiosos que eclodiram no sertão do nordeste é a gênese das lutas campesinas no Brasil, de resistência a situação de opressão e de miséria que, com suas especificidades, assumiam como fundamento a chegada do “messias” para por fim a opressão e a injustiça social.
Palavras-chave: História, Nordeste, Movimentos Socioreligiosos.

SOCIO-RELIGIOUS MOVIMENTS IN NORTHEAST BRAZIZ:
ONE BRIEF RESCUE HISTORICAL
This work results from studies on the movement socioreligiosos thar erupted in northeastern of Brazil between the nineteenth and twentieth centuries, highlighting the movements: Canudos - Ba (1893), Caldeirão - CE (1926), Pau de Colher - BA (1934) e Borboletas Azuis - PB (1977). We seek to recover the dynamics of these movements that emerge in the northeast field at different times. The methodology appreciated bibliographical sources, documents and narratives of men and women seeking to preserve the history of northeastern Brazil. From the analysis we emphasize that the religious movements that erupted in the hinterland of the northeast is the genesis of peasant struggles in Brazil, the resistance situation of oppression and misery, with their specificities, assumed as a basis the arrival of the "messiah" to end the oppression and social injustice Keys-Words : History, Northeastern, movements socioreliogiosos.
Keys-Words: History, Northeastern, movement’s socioreliogiosos
1 Pedagoga e habilitanda em Gestão Escolar pelo Curso de Pedagogia do CED/UECE.
2 Mestre em Educação e Professora do Curso de Pedagogia do CED/UECE.


Introdução
Este trabalho resulta de estudos sobre os movimentos socioreligiosos que eclodiram no Nordeste do Ceará entre os séculos 19 e 20. Para efeito deste artigo ocupamo-nos em realizar um breve resgate histórico desses movimentos na dinâmica socio-histórica objetiva que provocou a sua eclosão em espaços e tempos diferentes, tendo, contudo, como particularidade a opressão das oligarquias locais, a seca e, como efeito, a miséria e a fome que marca a História do Nordeste Brasileiro, especificamente a História do sertão nordestino.
O estudo da História ocupa-se com o tempo. Apropriando-nos das palavras de Cardoso preocupa-se “... com a duração, com a mudança e com as resistências à mudança, com as transformações e as permanências ou sobrevivências” (1982, p. 107). A historiografia oficial, contudo, ao tentar paralisar a história humana nos forneceu uma leitura do tempo destituído de historicidade. A História torna-se a História de fragmentos do passado, contado sob a perspectiva do dominador, do vencedor, perdendo de vista a história construída nos diversos tempos e espaços e/ou no mesmo tempo e espaço por grupos e classes sociais com concepções de mundo e interesses distintos. Assim entrou a historiografia do nordeste do Brasil. O povo nordestino como uma sub-raça, passivo e aprisionado nos mundos místicos e, por isso mesmo, inapto ao progresso demandado pelas sociedades modernas. Como agravante, diz a leitura dominante, conta ainda com condições naturais e climáticas adversas ao progresso individual e coletivo.
A prática social de homens e de mulheres, de grupos e classes sociais do Nordeste revela, contudo, outras histórias. Entre os séculos XVI e XVII os povos indígenas que habitavam as terras nordestinas foram ativos combatentes nas Guerras dos Aimorés (Bahia), dos Potiguaras (Paraíba-RGN), dos Tupinambás (Bahia e Espírito Santo-Sudeste), da Confederação dos Cariris (PB e CE -1686-1692), todos contra a opressão luso-brasileira. No Ceará, nos mesmos séculos, colonizadores foram diversas vezes forçados a fugir pela força da resistência indígena. Somam-se a essas lutas a Insurreição Pernambucana que culminou com a expulsão dos neerlandeses do Nordeste do Brasil; o Motim do Nosso Pai (PE, 1666); a Revolução de Beckman (MA, 1684-1685); a Guerra dos Mascates (PE, 1710-1711); O Motim do Maneta - sublevações contra o monopólio do sal e aumento de impostos (Ba, 1711); a Revolução dos Alfaiates (Ba. ), a Confederação do Equador (revolta separatista, Nordeste - 1823-1824); a Cabanada (insurreição popular, Pe. e Al.- 1832-1835); a Sabinada (insurreição popular, Ba 1837-1838); a Balaiada (insurreição popular, Ma -1838-1841); Insurreição Praieira (revolta socialista, Pe. -1848-1850), dentre outros. Em síntese, da resistência inicial indígena e quilombola os nordestinos introjetaram a persistência e a esperança por um futuro sem opressão e de liberdade.
São movimentos que por motivações diversas desmistificam o imaginário historicamente construído sobre a formação político-cultural do povo do nordeste. As histórias dos homens e das mulheres reais desvelam a outra história que a História oficial mascarou. De um povo preso às tradições revela-se um povo com potencial transgressor, mesmo que em determinadas circunstâncias essa transgressão insurja com facetas míticas, religiosas, como, por exemplo, os movimentos messiânicos. É nessa perspectiva que se insere o nosso estudo
Nosso objetivo como este artigo é resgatar as lutas de resistência dos movimentos messiânicos que, com suas especificidades, insurgiram no Nordeste do Brasil, dentre os quais Canudos-Ba (1893-1897), Caldeirão-CE (1926-1936), Pau de Colher – BA (1934) e Borboletas Azuis - PB (1977). O tratamento metodológico valorizou fontes bibliográficas e documentos escritos e narrativas e mulheres que, apesar do tempo, não deixam a memória de sua história apagar-se. Para a sua exposição o artigo será divido em dois momentos: no primeiro momento abordaremos o conceito e os contextos sociohistóricos dos movimentos sociais de características messiânico-religiosas que em tempos e lugares diversos refletiram tipos de resistência contra a opressão e a miséria e pela justiça social; no segundo momento destacaremos os movimentos sociais de características messiânicas que eclodiram no Nordeste brasileiro e sua relação com a realidade sociohistorica objetiva que marcava a região.

1 Movimentos populares sócio-religiosos: do que se tratam?
Quando se fala em movimentos sócio-religiosos ou de características messiânicas imediatamente identificamos um conjunto de estudos que os abordam sob perspectivas diversas. Há quem os identifiquem como movimentos sociais de conteúdo revolucionário, outros que os apreendem como movimentos utópicos ou mesmo frutos da ignorância e do fanatismo. Em alguns casos passa-se a idéia de que um movimento social-popular contestatório deve ser movimento pela consciência sócio-histórica para a qual necessita o abandono da ignorância. Na nossa perspectiva concordamos com Rossi quando diz que o messianismo é uma força histórica, dinâmica e prática e, sob nenhuma hipótese pode ser compreendida como uma força passiva e inerte, de ressignificação e conformismo. Reforça o autor:
Nesse sentido pode-se falar que uma das características fundamentais do messianismo é seu caráter de “salvação coletiva” em detrimento da salvação individual. A dinâmica do movimento envolve o grupo e não o indivíduo. Envolve a história de um grupo a partir de suas relações sociais e não a história de uma personalidade individual. E, por isso mesmo, é um movimento dinâmico; um movimento da força social que busca a transformação da terra não para um só homem, mas para toda a humanidade (2007, p. 10).
Na história da humanidade nem todos os movimentos contestatórios dos setores explorados e oprimidos tinham a consciência do papel histórico que desempenhariam. Essa constatação não reduz a sua dimensão histórica. A dimensão política e de recusa as estruturas de poder dominantes, ou mais precisamente a luta consciente entre os setores explorados e oprimidos contra seus opressores e explorados muitas vezes se desenvolveram de forma fragmentada, centrados em lutas especificas ou simplesmente transmissão de valores contra – hegemônicos que não colocavam como problema a superação da sociabilidade então dominante, nem mesmo a divisão do poder político com os setores dominantes da sociedade. Foi assim, inclusive, às primeiras lutas empreendidas pelos comerciantes e nobres na Idade Média, foi assim nos primeiros séculos do calendário cristão.
No século I, depois de Cristo, o mundo então conhecido foi tomado por movimentos de natureza doutrinária que inquietava e desafiava a tradição dos povos do mediterrâneo, particularmente os valores de sua classe dominante e dirigente. O movimento cristão primitivo inaugura organicamente seus próprios fundamentos e os apresentará como alternativa a cultura hebraica e ao helenismo.
Apropriando-nos das palavras de Cambi,
Com o Apocalipso de São João, os temas do “fim dos tempos de tensão escatológica na história e da regeneração final do homem (com a resurrectio carnis e o juízo de Deus) são os que iluminam um caminho educativo próprio das comunidades cristãs, caminho que deve nutrir-se de uma tensão para a “realização dos tempos”, assim como da “redenção da realidade”, solicitando expectativas e empenho escatológico, tensões proféticas, um olhar para além da história a fim de preparar sua superação (1999, p. 124-125).
A exaltação do Cristo como homem espiritual, sofredor, em luta pela justiça social e pela redenção dos homens, e que por esses ideais teria morrido, serviu de alimento para a emergência de movimentos messiânicos que passaram a ser difundidos em diversos continentes, dentre os quais no norte da África, na Oceania, no Sudoeste da Ásia e nas pradarias da América.
Esses movimentos de características religiosas passaram para a historiografia com a denominação de Movimentos Messiânicos. Ressaltamos, porém, que o caráter mítico, religioso desse fenômeno social manifesto em regiões tão distintas do globo não nega a dimensão histórico-social que provocam a sua emergência. Concordando com Arruda, os movimentos messiânicos, mesmo considerando suas especificidades, trazem consigo a negação da opressão, sendo “uma das formas de resistência dos povos oprimidos em seu confronto com as estruturas de dominação (ARRUDA, 2006, p. 26). Lembramos que os primeiros movimentos messiânicos registrados pela historiografia emergiram com a consolidação da revolução industrial e a expansão territorial dos impérios coloniais para espaços já conhecidos, visando sobre tudo mercado consumidor para seus produtos e matérias primas e, como parte importante desse processo a imposição de hábitos de consumo e valores culturais que deveriam ser absorvidos pelas regiões e povos conquistados. O chamado neocolonialismo foi, portanto, um processo de dominação política, econômica e cultural das potências capitalistas que culminou com a partilha da África e da Ásia e, como efeito, a pilhagem de regiões inteiras e a ampliação da miséria dos povos dos lugares dominados. Nesse movimento merece destaque a exploração econômica das terras para exploração dos grandes consórcios capitalistas. O resultado desse movimento histórico foi a emergência de vários tipos de lutas coloniais, envolvendo particularmente as comunidades que viviam da agricultura. Nesse sentido concordamos com Arruda quando ressalta os movimentos messiânicos/religiosos como a gênese das lutas sociais campesinas. Com suas palavras:
È necessário salientar que a reação messiânica só começou a eclodir após o surgimento dos primeiros conflitos pela posse da terra usurpada pelos colonizadores europeus. Enquanto as relações entre ambos eram pautadas por cordialidades recíprocas, a história não registrou nenhum surto desses movimentos. Porém, à medida que a postura colonialista começava a se delinear e a mostrar sua real face, e as terras indígenas passavam a ser alvo de invasões e seu povo subjugado, as reações eram imediatas, sendo o messianismo uma das principais formas de resistências anticolonialistas (ARRUDA, 2006, p. 35).
De fato como camponeses livres ou trabalhadores escravizados, os trabalhadores rurais se revoltaram contra sua exploração em inúmeras ocasiões desde o século XVI (PALÁCIOS, 2004). No Brasil, desde a conquista portuguesa no século XVI o modelo econômico dominante foi marcadamente o de concentração da terra em benefício de uma minoria e, como efeito, de exclusão da maioria do direito ao acesso a terra. O latifúndio garante sob diversas formas a sua expansão, contando com a proteção dos governantes locais. Essa realidade impulsiona resistências dos excluídos sociais e econômicos. Entre os séculos XIX e XX eclodem o cangaço e os movimentos sociais messiânicos. Ambos vinculados as questões sociais e fundiárias no Nordeste brasileiro, mesmo que partam de referências diferenciadas de luta contra a exclusão e a opressão. Para efeito deste artigo nos interessa os movimentos messiânicos que propiciaram aos deserdados da terra inscrever-se na história dos movimentos sociais do campo brasileiro e nordestino.

2 Canudos, Caldeirão, Pau de Colher e Borboletas Azuis: a resistência dos sertões nordestinos pelos movimentos socioreligiosos 
O sertão do Nordeste do Brasil serviu de inspiração para a construção de importantes obras literárias que, sob a perspectiva do seu escritor narrava a paisagem natural e social dos sertões. Domingos Olympio, no romance Luzia Homem, publicado pela primeira vez em 1903, em uma das passagens do livro assim se reportava a seca e a população sertaneja do Ceará no ano de 18773:
Era o mesmo vaivém ininterrupto de homens, mulheres e crianças envoltos em rolos de pó sutil, magros e andrajosos, insensíveis á fadiga, ao calor de fulminar passarinhos, taciturnos uns, os semblantes deformados por traços denunciadores de íntima revolta impotente; outros resignados, como heróis, vencidos pela fatalidade; muitos alegres e sorridentes cantavam e brincavam, como criaturas felizes de encontrarem refúgio do assédio angustioso da fome, da miséria, da morte (1999, p. 95).
Á historiografia crítica do Nordeste reforça a percepção do escritor sobre a paisagem dos sertões nordestinos naquele contexto, acrescentando as contradições sociais e econômicas da região que potencializaram os conflitos sociais, como, por exemplo, a concentração de terras nas mãos das oligarquias locais que se aproveitavam inclusive da seca e da miséria para oprimir e explorar. Na formulação de Furtado:
...a sociedade formou-se no âmbito das fazendas, onde poder econômico e poder político eram duas faces da mesma moeda e onde os aglomerados urbanos nada mais eram que prolongamentos das fazendas. Esse quadro de isolamento reforçava a situação de dependência do trabalhador rural em face do senhor de terra. (FURTADO, 1989, p. 22).
A concentração de terras e o fenômeno das secas reforçam a descrença dos “deserdados” da terra de qualquer saída que não fosse de natureza mítico-religiosa. A fé torna-se a força que mantinha em “pé” os caboclos sertanejos e o elemento que propiciou o seu agrupamento em torno de promessas propagadas por homens como Antônio Conselheiro (Canudos), José Lourenço (Caldeirão), Senhorinho (Pau de Colher) e Roldão (Borboletas
3 Luzia Homem é uma obra literária produzida pela Escola Naturalista, porém não é difícil encontrar no decorrer de suas páginas a paisagem social e econômica dos sertões do Ceará, o ambiente de catástrofe natural causando graves prejuízos a vida econômica, social e moral das populações pobres rurais.

Azuis), líderes carismáticos que reanimavam a religiosidade de um povo esquecido pela realidade mundana. Nessa perspectiva reforma Arruda, reportando-se particularmente ao movimento messiânico Canudos:
Canudos não terá sido apenas um dos movimentos sociais mais importantes da história do Brasil. Ele guarda, até hoje, um caráter de exemplaridade da estrutura social e da forma de convivência das classes e dos grupos sociais do país; uma estrutura fundada na extrema concentração da riqueza, da renda e da terra, com uma classe dominante reduzida e poderosa e uma massa numerosa de carentes; uma convivência impiedosa e violenta (2006, p. 5).
As motivações que permitiram, em lugares espacialmente ditintos, o agrupamento de milhares de camponeses, índios e escravos recém-libertos em torno da crença na vida de um “messias” que trará aos homens um mundo de virtudes e justiça não significa dizer que se expressaram de forma similar. Os movimentos messiânicos Canudos e Caldeirão, por exemplo, se separam em um pouco mais de quatro décadas (1874 – 1920), porém ambos construíram uma extraordinária experiência de vida comunitária que rompia com a lógica social do sertão nordestino. Seus líderes, Antônio Conselheiro e o beato José Lourenço encarnavam as esperanças daquele povo e, com o trabalho coletivo construíram um “oásis” em terras castigadas pela seca, pela forme e miséria e, por isso mesmo foram violentamente esmagados. As justificativas, contudo, registradas nos documentos oficiais das épocas, inclusive, os jornais impressos propagavam motivações diferentes para a impiedosa chacina contra suas comunidades.
Conselheiro, líder de Canudos era acusado pelas forças republicanas como sendo um contra-revolucionário monarquista, divulgando, inclusive que o beato estaria armando a comunidade para derrubar a república recém instalada. O movimento republicano que destituiu a monarquia no país estava apoiado na elite agrária e, evidentemente, defendia os interesses das elites regionais. A comunidade de Canudos caminhava na contramão desses interesses e dos compromissos assumidos pelos republicanos. A natureza popular do Arraial de Canudos também se opunha as características das novas estruturas de poder nacional que recusavam qualquer participação popular e sua interferência na nova ordem. Começaria quatro expedições militares para exterminá-la. Em cada uma delas o exército republicano contou com a resistência da comunidade de Canudos, que ao final não resistiu, contabilizando 20 mil sertanejos mortos, entre homens, mulheres e crianças.
Já o Beato José Lourenço, líder da Comunidade do Caldeirão passou a ser associado, pela oligarquias e pelo poder local ao movimento comunista. No ano de 1924, ganha força o movimento tenentista, realizando levantes organizados contra as oligarquias e tendo como principal líder Luis Carlos Prestes. No final de 1925, a Coluna Prestes estava formada e partia para a região nordeste (Maranhão, Piauí e Ceará). Nesse percurso o movimento, liderado por Prestes buscava mobilizar os setores sociais locais marginalizados contra a hegemonia das oligarquias. Era o pretexto que precisava o poder local, a oligarquia local e o poder eclesiástico para fortalecer o apoio da sociedade contra a Comunidade do Caldeirão que, nesse contexto, não dispunha mais das mediações do Padre Cícero. A organização comunitária do Caldeirão era associada à versão comunista de vida societal propagada no mundo com a revolução russa de 1917.
Como nos lembra Figueiredo:
Outra acusação que lhe têm feito freqüentes vezes é a de adulterar o culto, ministrando-o com práticas fetichistas. È outro aleive que, em bem da verdade, precisa ser destruído. Tendo em uma de suas salas, que traz sempre fechada a chave, enorme quantidade de quadros de santos, entre os quais se notam diversas fotografias do padre – Cícero, - as parêdes quase completamente forradas por essa estranha tapeçaria, o beato cada vez que penetra nêsse compartimento, para ele sagrado, curva-se com a maior veneração (Itaytera, 1961, p. 117).
A propaganda ideológica e falsificadora da vida no Caldeirão abriu o caminho para as investidas do Exército contra a comunidade, culminando com a sua destruição e a morte de um número entre 300 e mil sertanejos que viviam no Caldeirão. Com as palavras de Cordeiro Neto (capitão), em entrevista no documentário menciona:
Severino Tavares era um penitente exagerado. Ele estava pregando a rebeldia. A primeira providencia foi mandar a ida de um agente aquele local, examinar e dá informações. Na viagem de retorno José Bezerra disse o seguinte: o governo vai tomar providencia imediatamente ou se não tornara um novo Canudos. [...] Todos decidiram ficar [...]. As coisas, realmente mandamos incendiar. Diante disso, não tinha nada a fazer, a não ser os últimos acontecimentos posteriores. Por outro lado, eu devo dizer que a memória estar viva. O que fez não tenho que me penitenciar. Achei que cumpri com meu dever e com a segurança pública. (Documentário de Rosemberg Cariri, 1986).
As semelhanças entre Canudos e Caldeirão guardam, no entanto, algumas características particulares. Canudos se diferencia dos demais movimentos nordestinos, pela quantidade de “sertanejos que mobilizaram, à extensão dos territórios que controlaram e, sobretudo, aos prolongados e sangrentos combates travados com as forças militares enviadas para exterminá-los” (QUEIROZ, 2005, p.140).
Caldeirão, Pau-de-Colher e Borboletas Azuis, foram movimentos populares nordestinos que não alcançaram a mesma dimensão político e territorial de Canudos, mesmo considerando o longo processo de construção e consolidação da Comunidade do Caldeirão (1926-1936). A experiência traumática de Canudos, inclusive para as forças governistas, não permitiram esses movimentos populares alcançar tamanha dimensão. Não foi a toa à entrada no cenário de tensões sociais da figura do Padre Cícero, personagem religioso do sertão nordestino que transitava entre o poder oligárquico e os miseráveis do sertão cearense, gozando de grande influência como o Beato José Lourenço. Nesse sentido “para os camponeses nordestinos, o Beato era um líder carismático, um conselheiro, um homem dedicado ao trabalho e cheio de amor ao próximo” (RAMOS, 1991, p. 98).
Pau de Colher (1937-1938) e Borboletas Azuis (1977), pela extensão temporal e pelo contexto social e econômico insurgem muito mais como surtos messiânicos sem com isso reduzir sua importância histórica. Ao contrário, suas manifestações permitem-nos a identificação da repercussão da truculência do mercado mundial naquela década no Brasil e seus efeitos ao longo da década de 30, sobretudo nas áreas rurais.
Entre os anos de 1930 a 1940, período que eclode o movimento popular de características sócio-religioso Pau de Colher, a economia brasileira sofre os efeitos da crise econômica mundial que abalou o capitalismo, em especial os Estados Unidos da América, que cortou a compra de artigos de importação, dentre os quais o café do Brasil. Não podemos esquecer que, sendo a economia brasileira fundamentalmente agrário-exportadora, a retração do mercado mundial trouxe repercussões importantes, dentre as quais a queda nas exportações, afetando a cidade e o campo, as áreas rurais e urbanas. No campo da política o resultado foi o aumento dos conflitos sociais internos, no interior dos quais se insere a Revolução de 30 e seus desdobramentos como o Estado Novo e os movimentos populares de trabalhadores rurais, dentre os quais os movimentos Caldeirão e Pau de Colher.
O movimento sócio-religioso Pau de Colher ocorreu no município de Casa Nova na Bahia, entre os anos de 1937 e início de 1938, em plena vigência da ditadura Vargas. A justificativa do golpe de Getúlio Vargas é a existência de um plano comunista para a tomada do poder, "apoiado pelos comunistas de Moscou". Para conter o “avanço comunista”, o governo ditatorial lança o Plano Cohen e com ele a divulgação de que o comunismo estaria infiltrando-se no país. Assim como o Caldeirão, o movimento socioreligioso Pau de Colher se insere nessa contextualidade histórica, sendo o desdobramento sobre todos os aspectos da ofensiva política e militar sobre a comunidade do Caldeirão.
Pela historiografia, Pau de Colher costuma aparecer como extensão do movimento messiânico do Caldeirão, liderado pelos Beatos José Lourenço e Severino Tavares. Seu líder, Senhorinho, procurou reproduzir a comunidade do Caldeirão, bem como os ensinamentos do Beato José Lourenço, contando com o Beato Severiano Tavares para a tarefa de reproduzir a experiência da região do Cariri, no Ceará. Três décadas depois surge o movimento Borboletas Azuis, também num contexto ditatorial, agora sob a égide da ditadura militar, talvez, por isso, suas existências tenhas sido efêmeras. Não conseguiram reunir muitos adeptos e logo foram desmobilizados pelas autoridades policiais e eclesiásticas. Não conseguiram formar comunidades coletivas como Canudos e Caldeirão, porém um século que os separam do primeiro movimento popular organizado de características messiânicas do Nordeste brasileiro, Pau-de-Colher e Borboletas Azuis retratam a manutenção de uma realidade excludente dos sertões. No caso específico dos “Borboletas Azuis”, destaca Araújo:
...as profundas mudanças trazidas pelo Concílio Vaticano II (...), os avanços trazidos pela modernidade e pela ciência, além da proximidade do fim do século XX e do II milênio da era cristã podem ter sido fatores que motivaram a esperança dessas pessoas no advento de um novo reino, onde os “puros” viveriam em total igualdade entre si. Reunidos numa espécie de irmandade, determinado dia, afirmam haver recebido a visita de Jesus Cristo e que este lhes dera a seguinte mensagem, “(...) no mês de maio de 1980 haverá um dilúvio como no tempo de Noé (...) (2009, p. 3).
O dilúvio não aconteceu, o movimento “caiu no descrédito, porém a organização sindical dos trabalhadores rurais que se firmam a partir da década de 30 não pode ser pensada sem a continuidade de todos esses movimentos populares. Sua característica de religiosidade continua ser a marca dos povos dos sertões, mas não a idéia da passividade, do conformismo.

Considerações

Dos resultados do estudo aqui esboçado destacamos que os movimentos sócio-religiosos que eclodiram no sertão do nordeste é a gênese das lutas campesinas no Brasil. São lutas populares de resistência a situação de opressão e de miséria que formavam a paisagem do sertão nordestino. As especificidades que marcaram cada movimento sócio-religioso no Nordeste do Brasil, não reduzem a sua natureza transgressora à ordem política, econômica e inclusive religiosa centrada no poder eclesiástico, constituindo-se, por isso mesmo, numa força histórica, dinâmica e prática que a dimensão religiosa e messiânica não apagou. Ao contrário, os movimentos que antecederam Canudos e que proliferaram com a sua destruição no Nordeste e em várias localidades do território nacional desvelam seus vínculos com a realidade social objetiva.

ARAÚJO, Lidiane Cordeiro Rafael de. “Borboletas Azuis”: crenças de um movimento messiânico-milenarista. IV Congresso Internacional de Estudos Comparativos da ABRAEC UEPB, Campina Grande – Brasil. 22 a 24 de setembro de 2009
ARRUDA, João. Messianismo e Conflito Social: Canudos. Fortaleza: editora UFC, 2004.
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CARDOSO, Ciro Flamarion S. Uma introdução à História. – 2ª. ed. – São Paulo: brasiliense, 1982.
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OLÍMPIO, Domingos. Luzia-Homem. ABC Fortaleza. – 1999.
POMPA, Maria Cristina. Memória do Fim do Mundo: para uma leitura do movimento sócio-religioso Pau de Colher (Dissertação de Mestrado). 1995.
QUEIROZ, Renato da Silva. Mobilizações socioreligiosas no Brasil: os surtos messiânico milenaristas. REVISTA USP, São Paulo, n.67, p. 132-149, setembro/novembro 2005
ROSSI, Luiz Alexandre Solani. O Messianismo e a Construção do Paraíso na História.
Organização: Karina K. Bellotti e Mairon Escorsi Valério. Dossiê Religião N.4 – abril 2007/julho 2007